Sentimentos transformados em divagações; tentativas de descrever o que percepciono; ginástica no uso da escrita; pretensão de escrever... mais do que dar-me, vou-me ao trabalho!
Há anos (desde os 20 ????) que procurava
um CD - O Milagre dos Peixes - de Milton Nascimento, com participação de Wayne
Shorter . Ontem finalmente encontrei-o, mas só hoje percebi que era o tanto
desejado: afinal o CD é de Wayne Shorter featuring Milton Nascimento, e chama-se
"Native Dancer".
E foi logo na primeira nota ouvida - uma nota que me
atacou de mansinho e me fez sentir uma nostalgia tão triste e tão estranhamente
eufórica - que dei por mim de braços abertos, a rodopiar pela sala, a chorar mais
um regresso de mim. Há nostalgias boas. Esta é uma delas.
Só para aguçar os
sentidos, nele participam ainda: Airto Moreira, Wagner Tiso, Herbie Hancock...
Para ti meu filho, que
fazes anos hoje, embora saiba que outros gostos te pertençam, envio cheio de
carinho, carregado de amor, um tema.
Acredita meu querido
filho: a mãe rodopia por entre cada notinha, por entre cada sussurro, por entre cada pausa, de amor a transbordar por ti... sempre (mesmo quando a distância parece existir).
Hipnotizada, olhava
os magníficos cabelos ondulados. Corpinho lançado para a frente, dedinhos
finos, a agarrarem o assento da frente sem se atreverem a entrar pelos fios
dourados que, ligeiramente, abanavam a cada curva da estrada.
Seríamos quantos
nessa altura? Tu, o pai, três ou quatro filhos?
O pai a conduzir, atento a tudo: à paisagem, à estrada, a ti,
aos filhos enfiados na parte de trás do carro.
- Ai, Zé João… -
ouvia-se a tua voz em súplica.
Ele olhava rápido
para ti, ainda ignorante, mas não totalmente admirado.
E lá vinha o rol de
possíveis esquecimentos: o fogão ligado, não!, o ferro de engomar por desligar…
a torneira da banheira?! A porta aberta?...
Era um clique que te
dava e que era, sempre, infundado (pelo menos que me lembre).
Ele tentava apagar-te
as dúvidas.
A praia ali tão
perto, com pinhal à porta… “vá lá, tens a certeza? Pensa bem. Vá lá.”
Tu pigarreavas,
baixavas a cabeça de cabelos ondulados a dançarem, alheios a tudo.
(Foto retirada por mim da página do Facebook da "Real República Baco")
Ali estavas tu,
galináceo, como te apodou o meu pai quando um dia, ao visitar-me, te encontrou
à porta da minha casa, na famosa Rua das Flores, 31. Fingi que nem te conhecia,
disse-lhe que achava seres primo de uma colega. Meia verdade. Mal sabia o meu
pai que virias a ser - tão somente - o meu ombro amigo e das pessoas mais
importantes que conheci.
Ali estavas tu,
escondido numa carapaça de humor irónico que se desfazia aos primeiros efeitos
da cerveja partilhada comigo. Pisávamos então os primeiros degraus de gente
livre, ainda cheios de fantasmas. Cheirávamos a adolescentes inocentes e infantis,
com ganas de viver. E ali estava eu, sempre pronta a acompanhar-te nas saídas doidas:
a correr pelo Quebra Costas, rumo a nada, ou pelas ruelas apertadas de cheiro a
sabedoria ancestral. Muitas das vezes seguíamos com o Testa de Quilha, por
isso, muito mais doidos, a interromper a conversa uns dos outros, a querer
tempo de antena, a percebermos laços indestrutíveis entre nós, as nossas
maluqueiras, as nossas ânsias, tudo misturado a dar-nos uma felicidade
indestrutível.
Em Coimbra o meu
mundo era muito mais bonito, mais cheio e – sobretudo – muito menos assustador:
por vossa causa. Mas eras tu que mais próximo te encontravas de mim. Talvez
porque revelavas uma fragilidade gémea da minha. E por isso os nossos sonhos
tocavam-se (mesmo que não os conhecêssemos ainda) e era fácil conversarmos,
como se a vida (no meu caso tão má) não existisse para além da amizade que nos
unia. O nosso mundo era uma autêntica correria de querer respirar, de querer
que o ar jamais acabasse de nos inebriar. A miúda toda certinha, de educação
exemplarmente castrante, tinha amigos: amigos homens (sacrilégio!), com quem
saía pela noite fora a entrevistar “homens do lixo”. E gostava! Gostava da
cerveja a correr de boca em boca, dos cigarros partilhados, da sede de viver. E
nem as proibidas palavras que sempre disseste em catadupa, me fizeram não
gostar de ti. Por isso vestia a tua roupa e saía de bigode pintado a lápis dos
olhos, só para fingir que não era eu, para me disfarçar, mas no fundo, no fundo,
era só porque sim. Por isso te engravidavas de pão roubado à porta da Faculdade
de Medicina, para juntar ao leite magistralmente retirado da porta do Hotel, na
margem do Basófias.
Foram dos melhores
tempos que vivi. Tempos pintados de horrores, graças a um passado estúpido,
gravado a muito sofrimento e à flor da pele, que ajudavas a atenuar até ao
esquecimento. O riso, libertador e sempre novo, misturava-se com todas as
maroteiras, todos os dizeres e trapalhadas que inventávamos: bombinhas de
Carnaval a rebentar na sala da Baco, com fugas atabalhoadas e bastante
barulhentas; baldes e alguidares cheios de água à espera do incauto, ao ponto
de dificilmente existirem roupas secas para vestirmos; enceramento exagerado do
soalho velho, logo à saída dos quartos para que algum desgraçado se
espatifasse; despejamento dos quartos, com toda a mobília colocada em frente à
Igreja; fugidas à polícia… E quase sempre tu a seres culpabilizado pelo
senhorio pelos estragos de tanto “vandalismo”.
Ninguém te mandava
espreitar pela janela, de cada vez que, após as traquinices, tocavam a
campainha.
E hoje lembraste-me
de alguns dizeres outrora escritos nas paredes da República:
Há quem defenda que a morte deve
ser encarada como um patamar final da vida, inevitável, sem dúvida, mas normal.
Tudo muito bonito, mas eu não lido bem com esse patamar sórdido, negro e de
onde não se sai para mais lado algum (pelo menos assim o creio). Já não
pensando no meu patamar, aflige-me ver esse final em seres por quem nutro amor,
simpatia, ou admiração.
Mário Soares partiu. Viveu várias
vidas, obstinado, crente no que sentiu verdadeiro, corajoso. Para mim foi uma
das figuras que mais marcaram a minha história de vida e, decididamente, das
mais carismáticas. Admirava-o enquanto ser humano e quase invejava o seu
espírito livre, decidido e arrojado. A sua inteligência parecia-me palpável e simples.
Algumas vezes tive dúvidas quanto ao seu altruísmo (talvez pela facilidade com
que se impacientava), mas considerei sempre que, na minha balança (e sei lá eu
explicar como a ponho a funcionar e quais os pesos que nela coloco), o Mário
Soares pendia sempre para o melhor e para o mais positivo e que por isso eu lhe
estava grata. Vi o seu aparecimento - neste país a querer largar o cinzentismo
– com admiração, mas meus olhos eram ainda novos para avaliar a sua importância
por entre tantos outros rostos que com ele emergiram. Claro que também fui uma
voz discordante de alguma posições suas.
Os anos foram passando. A vida
deslapidou seres importantes até que chegou a vez de Maria Barroso. Nessa
altura, dado o tempo que passaram juntos (cerca de 70 anos), lembro-me de ter
pensado que o Mário Soares não duraria muito mais, pela tristeza e solidão que
passaria a sentir, sem o amor de sua vida. Hoje considero que, tendo ele a
idade que tinha aquando da morte de sua esposa, dificilmente erraria o meu
pensamento.
Viveu o que lhe foi possível e se
a sua idade já não lhe permitia projectar a voz (de tom aberto, autoritário e
destemido) para afastar algum elemento indesejado, ou abrir/alertar mentes; se a
idade, lhe retirou as forças para caminhar por entre vales e serras, ou pura e
simplesmente o impossibilitou de se agarrar a uma carruagem de comboio ou
projectar o corpo para fora da janela de um carro, enquanto - de sorriso aberto
e, mais uma vez, destemido - abria os dedos indicador e médio em V de vitória,
ou o polegar em fixe; se a idade já não lhe permitia intervir impetuosamente
contra males abomináveis (onde a desumanização se enraíza quase a tornar-se
normal nos dias que passam) de forma a deixar claro que o medo e o silêncio
apenas promovem a enormidade do que de mais errado possa existir; essa mesma
idade não apagou a curiosidade, nem o discernimento político, social e cultural
que só um grande Homem pode conter e que para mim estava bem visível no seu
olhar.
Fiquei triste pela sua morte,
ainda estou triste. Mas sei que a minha maior tristeza reside na certeza de que
poucos serão tão destemidos quanto Mário Soares e, sobretudo, poucos entregarão
a sua vida com lutas tão dignas de forma tão convicta, sonhadora e corajosa.
5 de Outubro, – dia de Portugal, enquanto República,
outrora celebrado com um feriado.
A chuva fustiga, sem dó.
Não me
importo. A irritação que sinto e sei que devo acalmar, é feita de cinzentismo.
Até a minha parte mais calma está desestabilizada. Não há ponta por onde se me
pegue neste dia invernoso.
Ontem, as legislativas mais uma
vez se decidiram pela vitória da direita e, embora sem a maioria, fiquei
perplexa.
No comboio o silêncio,
invulgarmente, acontece.
Por onde andam os festejos?
A alegria não paira e muito menos
se estampa nos rostos dos que me rodeiam. Olho atenta: vejo rostos tristes,
cansados, descolorados.
Por onde andam os conscientes
eleitores que renovaram o bem-estar de alguns e permitiram resultados que brocam
os ainda saudáveis dentes deste país tão lindo?
Por onde as bandeiras, os fatos,
as gravatas, o acre odor a perfume caro “I go all the way”?
Estes viajantes vestem roupa
triste, coçada e com vincos: têm os rostos crispados.
A crosta de desânimo teima em
crescer e eu – antes que me espoje pelo chão, a chorar a tristeza do tamanho da
chuva que rompe o silêncio – apelo à calmaria.
No meu comboio não há culpados.
No meu comboio não há inocentes.
Hoje politólogos enumeram razões
super inteligentes e compreensíveis para o resultado obtido.
Preciso imaginar que o meu povo –
desanimado – é estratega, sabe o que faz: tem em vista a limagem das diferenças
entre os partidos. Tudo em prole do entendimento e simbiose de ideias entre os
cabeças pensantes, que nos transcendem em decisões, que nos levam por caminhos
tortuosos, mas sempre no encalce de um Portugal melhor, para todos.
Mas, por vezes, os meus sonhos estão
cabisbaixos, desanimados e tristes.
Aviso: Qualquer
semelhança com os factos e personagens relatados neste texto são pura realidade.
- Vai Tutas, tu
consegues, vai… acredita, pá… Tu consegues!!!!”
Obedecendo às vozes
uníssonas de JR e TB e ao assobio esgrouviado
da AL, o Tutas –estoicamente – abria a porta do carro, colocava o pé
esquerdo no terreno de terra batida e entortava ligeiramente o direito, pronto
a recuar na intenção de sair da viatura. Em milésimos de segundo, a porta batia
no trinco e lá estavamos os quatro , entre risos, protestos e lamurias, já sem
assobio. A rodear a dianteira do carro os mastins ladravam sem parar, de forma
ameaçadora e, o mais afoito, equilibrava-se,
com as patolas da frente na vidraça do condutor, de fortes unhas a escorregar pelo cinza do
Audi, a fazer-nos imaginar os cabelos do Tutas de pé (caso a sua cabeça não
estivesse totalmente rapada).
- Eh pá, os gajos são
inofensivos. Vai lá pá… ó Tutas vai! Tu consegues…”
O Tutas repetia a
façanha, algumas vezes conseguia retirar o corpo por completo, dar um ou dois
passos mas, de seguida, contornava a porta do carro e quase em voo, mandava-se
para o banco dianteiro.
Mas voltemos atrás no
tempo.
Tudo começou no
sábado, num imenso e delicioso jantar no “TÁNAHORA”, em A-das-Lebres, onde
festejámos os anos do Paulo Vaz, um excelente amigo (já integrado no seio desta
família). Claro que a confusão – apanágio destes encontros dos Lellos – não se
fez anunciar e instalou-se: entre decibéis elevadíssimos e risadas; bacalhau
com natas e bochechas de porco; roubos de comida dos pratos de uns e outros;
doces; vinhos, cervejas, sangrias,
Portos e afins.
Ao mano Zéca, querido
sobrinho Hugo e equipa, os nossos agradecimentos por terem um espaço tão
agradável e pela excelente comida que nos iniciou na maratona gastronómica
deste fim-de-semana.
No final da noite as
crianças sabiam os seus nomes, pareciam estar normais (o que nos dá sempre um grande
alívio) e os adultos estavam a entrar cada vez mais na normalidade:
espalhafatosamente baralhados. Por sua vez, o aniversariante – habituado que
está à confusão da família dos Lellos – pareceu-me bem de saúde e feliz.
Terminada a noite,
despedimo-nos ordenadamente, com uns a terem direito a duplos e triplos beijos
e outros a verem navios.
No domingo, as
facções: família Cácá e família Tutas, com o emplastro TB (a minha pessoa em
pessoa) e o adoptado JR, abririam cedo a pestana e… ala para Portalegre. No que
me diz respeito (sou a emplastro TB) levei a mochila e acamei na cama do
Tiaguinho que, por sua vez, levou a mochila e pediu asilo na família Cácá. Para
trás deixou o Balú – o refugiado cachorro franjolas – que, exigiu dormir na sua
camita ao lado da minha e teve alguns pesadelos durante a noite (possivelmente
com medo que eu o mordesse).
O Tutas, ainda de
madrugada, fez o favor de andar de um lado ao outro do corredor, com a sua
tosse canina a servir de despertador. E lá me levantei, cheia de pica, com a
cama a agarrar-me, a não querer que a abandonasse.
Enquanto eu jejuei, o
resto do pessoal não perdoou umas dentadas nas apetecíveis fatias de pão
passadas em ovo (ó balha-nos deuses: será que conseguiram digerir o jantar e se
esqueceram do almoço marcado para daí a umas horitas?) e beberam sumo de
laranja.
Iniciámos a viagem.
1º destino: saída da ponte Vasco da Gama e apanhar o adoptado JR.
A paisagem foi alvo
(pela milionésima primeira vez) de ahs e ohs e novos ahs e ohs, com direito a
ser fotografada pela “coo-pilota” AL que, sem avisar, abria a janela e click
(olhava para o resultado), click (tornava a olhar o resultado) e click (de
novo, olhava o resultado), para chegar SEMPRE à conclusão de que os resultados
não resultavam (talvez porque o Tutas não parava o carro, sei lá…). Eu, atrás,
fiquei com o penteado despenteado e ainda estou a descongelar alguns neurónios
(isto vai aos poucos, que são muitos).
Pelo caminho, os
telefonemas à família Cácá primaram e, invariavelmente:
- Atão, já saíram? –
perguntava o Tutas.
- Não. Estão a tomar
o pequeno-almoço – respondia a AL.
O fim da ponte
anunciou-se e lá vislumbrámos o adoptado JR, de sobretudo cinzento - sem capuz,
que os odeia (deve ter medo de enfiar barretes) -, óculos de lentes progressivas,
mochila a condizer com o sobretudo e gaitinhas perto da garganta, mas do lado
de dentro. E trazia ainda a vontade de falar… e falar… e falar. Há que
reconhecer que foi um falar interessante - notório na alegria que acrescentou
ao habitáculo de vidros limpos e límpidos (excepto o do seu lado: completamente
embaciado).
Muitas coisas foram
ditas mas escusado será relatá-las que ninguém iria entender. Largo um ou outro
exemplo, só para os mais curiosos:
JR - Espera… deixa-me
tirar os óculos… - e mais uma fotografia para o boneco.
JR - Espera… deixa-me
pôr os óculos… Estamos na A6!
Tutas – Como é que
sabes?
JR – Ó pá… Agora , com
estas lentes super-progressivas, se olhar lá para o fundo, até consigo ver as
placas espanholas.
E eu, infeliz, com um
olho a ver ao perto e outro ao longe, nem o marco com a indicação A6 consegui
ver.
Lá para Estremoz, o
JR questionou o Tutas se teria fechado o seu carro:
– Eh pá, Tutas, eu
fechei o meu carro?
Tentámos descansá-lo:
que sim, com toda a certeza, que faz parte da rotina…, mas o JR, já sem dúvidas
e após fazer o rewind, chegou à conclusão de que o carrito estava aberto.
Colocou-se a hipótese de telefonar ao João Carlos (que ainda estava para os
lados de Torres Novas, uns 100 Km atrás de nós e por isso mais perto do carro do
JR), mas primeiro ele teria que ir ao nosso encontro para ir buscar a chave do
carro. Desistimos da ideia, tanto mais que o JR lembrou-se que, quando anda de
mota, estaciona-a e não tem como a fechar e diante tal argumento seu, que não
conseguiu desmontar, ficou mais descansadito e resolveu lembrar-se – de novo –
da sopa feita na noite anterior e que ficou esquecida fora do frigorífico.
- Ó pá… será que a
sopa se estragou, fora do frigorífico?
E nós:
- Nãããão… a sopinha
aguenta-se bem… não se estraga assim. Nem sequer está a trovejar… puseste alho
francês?
- Não. Só puz alho…
- Ahhhh então não se
estraga… Nem sequer faz relâmpagos…
E o JR já muito mais
descansado e agradecido com a explicação dos trovões e das faíscas e a fazer
banda desenhada para o ar, embaciou ainda mais o vidrinho do lado dele.
Em Estremoz (que só
vi de passagem), dei a entender que seria agradável beber um galãozito, mas os
cafés devem ter emigrado, que o Tutas só parou em Portalegre.
Para surpreender o Diogo
(que não sabia desta excursão familiar), o Tutas não estacionou perto do Café
Central (ponto de encontro e local do almoço), pelo que lá fomos, colados às ombreiras que não nos protegiam do cacimbo e que nos deixou preocupados com as
gaitinhas do JR. A ideia era, a certa altura, ficarmos escondidos enquanto o JR
se adiantava e preparava o terreno da surpresa.
E lá foi o JR:
mochila a descair do ombro, mãos nos bolsos do sobretudo, óculos de lentes
progressivas, gaitinhas no peito, pescoço encolhido – deveria ser para evitar a
chuvinha miudinha -, corpo inclinado para a frente a contrariar a inclinação da
pequena ladeira que nos separava do Café Central. Nós, encostados a uma vitrina
e de olhos espevitados e colados à porta do café (devia ser porque não tínhamos lentes progressivas), aguardámos o regresso do adoptado que se fez logo de
seguida, da mesma maneira, mas ao contrário: inclinado para trás.
O Diogo, como faz o
turno da tarde e noite, segundo indicações da sua mãe, ainda dormia a sono
solto. Foi entre murmúrios, lamurias e protestos velados que invadimos o café e,
com o desgosto: vai de uma tacinha de tinto na vez do galão. Até que o Tutas,
não se dando por vencido e com indicações da Domingas (mãe do Diogo), nos
enfiou de novo no carrito e resolveu ir surpreender o filhote, na sua doce
camita.
Chegados a uma casita
branca, debroada a amarelo, plantada numa propriedade privada, o Tutas fez soar
a buzina do seu automóvel: insistentemente, sem se atrever a sair do carro, por
saber da existência de cães. Ao fim de uns minutos de chifrineira desalmada,
lembrou-se que casa também poderia ter outros inquilinos e que seria indelicado
acordá-los daquela maneira. Telefonou à Domingas e…
- Eh pá, vamos embora…
não é esta casa…
O mais depressa que
pudemos, todos ajudámos na manobra perigosa de marcha atrás, num “imenso”
declive e numa estradinha onde não seria possível fazer inversão de marcha.
JR – Vira mais Tutas…
não é para a direita pá… VIRA PR’À ESQUERDA. Eh pá Tutas…. Direita, mais para a
esquerda direita pá…
TB – CUIDADO MANO…
estás quase a sair da berma… direita mano, direita.
JR – Ó Tutas pá…. Esquerda…
vira para a esquerda…
E o Tutas, com a
porta do condutor entreaberta, cabeça de fora a pender para a traseira do carro
– Eh pá, eu estou a ver, caraças… vamos mas é embora daqui, antes que o dono da
casa saia de caçadeira.
E entre gargalhadas
incrédulas, lá se fez a manobra. A casa do Diogo ficava a escassos metros, no
terreno abaixo da casa anterior e era de tal maneira perto que esta parecia
fazer parte do tejadilho do carro.
Desta vez, uma série
de mastins, em ladroagem desigual, colou-se ao carro e o meu mano descobriu que
tinha uma buzina a duas vozes: ora aguda, ora grave, e foi uma chinfrineira
desenfreada, assobios arrepiantes, risos e gargalhadas, “DIOOOOOOOOOOOGOS” à
mistura, telefonemas para os telemóveis dele, da Maria (sua companheira) e
telefone fixo da casa. E as gaitinhas do JR (segundo o próprio) a descerem à
boca do estômago, a AL a ficar sem assobio, eu sem voz e o Tutas a arranjar
coragem para invadir a casa.
- Vai lá Tutas,
coragem pá. Os cães não fazem mal, têm ar inofensivo…
O Tutas tentava –
pouco, mas tentava – sempre com o nosso apoio. E de cada vez que fechava a
porta: os cães afastavam-se, para retomar o ataque em nova tentativa.
JR, TB e AL – É preciso
acreditar Tutas. Vai lá pá. ACREDITA!!! FORÇA, CORAGEM!!!
Até que de repente,
um ciclista passou na estrada, atrás do carro e os cães mudaram de alvo.
Caninos para um lado, Tutas para o outro, a atingir o alpendre e a fechar-se
atrás de uma porta em arame, mais parecendo enjaulado que outra coisa.
Entrou na casa e
tornou realidade o que até aí – para o Diogo – seria um sonho (eu não disse
pesadelo, ok?), o seu paizinho mesmo ali, por cima da sua cabecinha adormecida.
De regresso, o Tutas
foi escoltado até ao carro.
Como tínhamos tempo,
passeámos um pouco, ao som das memórias futebolísticas do Tutas e farmacêuticas
do JR. Olhámos o estádio de futebol, onde tantos golos o Tutas marcou; mais
abaixo, rodeámos o plátano centenal que, de tão vasto, vê os seus potentosos
galhos suportados por suportes em ferro, pintado de várias cores. Debaixo da
contínua névoa de chuvinha, o JR contraía o pescoço, tipo cágado, como se tal
postura evitasse que a chuvinha lhe molhasse a tola e incomodasse as gaitinhas.
JR, que – repito - prefere ter as gaitinhas a usar um gorro.
Entretanto a família
Cácá chegou e fomos ao seu encontro, no exacto momento em que estacionavam. No
lugar do condutor, o meu mano João Carlos, de ar sereno; ao seu lado, o Brunex
era completamente agarrado pelo banco que não o largava; atrás o Tiaguinho de
ar feliz por nos ver; ao lado a Manela, a fechar um saco de plástico com vomitado
do Gonças e com ar de quem o vai atirar à cabeça do João Carlos. Quanto ao
Gonças, um pedacito amarelado e a dizer que estava cheio de fome, já saltava do
carro.
No Central,
reiniciámos a maratona com uns copitos de vinho tinto aqui, outros ali (andavam
sempre a fugir); petiscos e, já na companhia dos dorminhocos e ainda
sobressaltados, Diogo e Maria e dos restantes convivas, sentámo-nos para o repasto:
bacalhau com natas; sangria; pernil com migas e batata frita; sangria e vinho
tinto; doces; vinho tinto e sangria; o chavascal do costume; os papparazzis do
costume; a alegria do pessoal; a confusão; a troca de gritos; a sangria &
vinho tinto, não Lda.; as patetices; as provocações; o resvalar de olhos e
lentes progressivas pelos amigos e o desejar (estou convicta) de outros
encontros com os amigos do Donald’s Club, familiares e todos os que vierem por
bem (é favor trazerem sangria e vinho tinto).
A comitiva – Cácá e
Tutas - ainda passou pela bonita casa da simpática Marília (aniversariante),
onde bisbilhotou as obras de arte e transformações da casa. Por fim, de novo no
Central, procedemos à segunda despedida do Diogo (o Tutas ainda voltou para uma
terceira despedida melosa ao seu primogénito).
De regresso a casa,
ainda de copo na mão lalala… senhoras e senhores ... Olavo Bilack... lala
Desculpem, não é nada disto.
De regresso a casa, o
Tiaguinho foi incorporado entre mim e o JR. Os vidros portaram-se bem, à
excepção do do lado do JR: embaciado (porque seria?). Durante a viagem
escutaram-se assuntos sérios entremeados com outros, galhofeiros e, numa
paragem casual, numa área de serviço, o JR a queixar-se de uma anca, trocou de
lugar comigo que – para ser simpática e, depois de saber do problema do seu
joelho esquerdo, que estala com’ó caraças (demonstração feita ainda na casa da
Marília), acabei por sentir uma pequenina dor solidária na minha anca esquerda.
Após alguns Kms de estrada e falatório, todos os vidros estavam limpinhos, à
excepção do vidro ao lado do JR: completamente embaciado.
E não vos canso mais.
Mas antes de terminar
preciso dizer-lhes que o JR insistiu que passássemos em sua casa para provarmos
a dita sopinha, não sem antes verificarmos se o carro ainda estaria no mesmo
sítio, claro.
A malta não se fez
rogada, mas pelo sim pelo não decidimos passar no “Lidel” e comprarmos uns
bifinhos de perú e umas garrafinhas de tintol e umas batatinhas e uma saladinha
e uns chocolatitos e umas meias quentinhas.
E assim foi.
O carro estava
fechadíssimo!
A entrada no “Lidule”
fez-se em correria espontânea com o JR à cabeça, a guiar um cestinho de compras
e a pantominar pelos corredores afora.
Já em casa do JR…
comemos e bebemos como se há 15 dias não o fizéssemos.
Ah e a sopa estava boa.
E, agora sim,
termino, que o JR está a deitar fumaça, desejoso de fazer a sua publicação
(já ameaçou fazê-lo e tudo), mas combinámos fazer as publicações em simultâneo,
para não haver copiansos. Além disso, não quero acordar as gaitinhas.
Adorei e agradeço a
todos os belos momentos que passámos.
Vuelvo al Sur, regresso al amor. . . e tantas outras composições de Astor Piazzolla - com o enorme violoncelista Yo Yo Ma - têm-me acompanhado (repetidamente e sem enjoos) há alguns dias. Acompanham não só a mim, mas à leitura, que me engole durante as viagens de comboio e metro e me vomitam para o mundo real, onde visto indumentárias menos agradáveis.
Astor conseguiu a minha pessoa no seu total, com temas deliciosos, pejados de uma estranha e melancólica desenvoltura (e não serão estes os ingredientes da melancolia?).
Certo é que enquanto viajo pelos meandros absorventes da leitura, a música agarra todas as pregas do meu tecido corporal, entranha-se e viaja - ela também - até me invadir a alma, saltar para o cérebro e mergulhar despudoradamente de sinapse em sinapse - vestida de cores cinza-sépia.
A voz de Goyeneche - roufenha do tabaco e aguardente -, cheia de emoções, cheia de dores, esperanças, enganos, alegrias... e o meu livro, a despojar ânsias ficcionadas de adivinhação policial e meninices de poeta, enriquecem-me até à exaltação.
Passas a correr, vejo-te, sinto-te, mas
passas tão rápido: fico impotente de te seguir.
Tenho de redimir-me. Alcançar o patamar da desilusão, da dor
de não te ter aproveitado – como o poderia ter feito? Talvez se tivesses tido um
pouco de tempo para mim; me abanasses; obrigasses a perceber o quanto és veloz: que quando
passas, já nada pode acontecer antes. Não! Passas levemente, deixas a tua
carga pesada, e eu continuo a sentir-te sem te tocar, sem te perceber e sem que
me entendas . Poderias ter tido um pouco de compaixão, mas não: continuas a
passar, rápido, com um sorriso mordaz – talvez a palavra adequada fosse cínico
– e inalterável, como só tu sabes fazer e ser.
Desnorteias-me. Olho para mim e não me vejo, pelo menos
como desejaria (ou, como por vezes, me imagino – o que vai dar ao mesmo). E
todos os dias me apetece agarrar-te -
sem saber por onde - parar-te,
acorrentar-te e recuperar o que sei teres-me tirado e dar-te o que me deixaste.
Mea culpa!
Mas não quero que seja só minha: arrepanha-me a
solidão cheia de vazios e de ti. E porque te sei meu carrasco, não te perdoo.
Dás-me esta coisinha crescente que alimenta esta ânsia de nada querer ver, de
não desejar este teu passar, que dói e me maltrata e me faz cair em letargia
estranha e fútil.
Confesso: talvez não saiba viver, aproveitar-te… sei lá… Se algum
dia te desejei foi há muito, há
muitos pedaços de ti: tinha motivos para tal, mas já não te quero, pelo menos
com tal intensidade. Não podes abrandar? Porque continuas a acelerar?
Dói-me o corpo enquanto durmo; mirram-se-me os ossos (à
sucapa) nesse dormir. Infortúnio me trazes em cada dia que me tiras. Humedecem
meus olhos nesse desgate imparável; meu
coração aflige-se: tudo por tua causa.
Se ao menos soubesse o que fazer no tempo que ainda me vais roubar…
mas não. Tu passas pela calada, largas vestígios que não pretendo – ingrato.
Não és capaz de largar pequenas pistas de sorte. Nada. Carregas gargalhadas
finas de areia a escorregar pela ampulheta da vida: e não a viras – nunca.
Por isso te acuso: és um mau professor; maltratas-me; jogas mal o baralho da minha vida. Bem sei que
olho as estrelas e o mar e o verde lindo da natureza – ponteado de cores e
vários brilhos -, com olhos de esperança, mas de que me serve? Mais parece o
brinquedo que se promete sem dar. Acenas o destino, veste-lo de arco-íris e eu
(pobre coitada) caminho em busca do pote de ouro no seu final: nunca o
encontro.
Não gosto de ti!
Impiedoso e feio te tornas a meus olhos.
Vestes agora – cada vez mais – de negro, e tens garras sujas de veneno da
desesperança, tristeza, solidão. E sei onde todo esse vertiginoso acumular
acaba – sim que tu não me poupas ao teu passar. Vais-me lembrando, durante os
sonhos (cada vez mais interrompidos); largas mensagens pelo meu corpo e (quando,
assustada, desvio a atenção de ti) aceleras meu coração; dificultas meu
respirar e obrigas-me a perceber que um dia – um dia qualquer, à tua escolha –
largarei o meu penar e as minhas alegrias, deixarei de ser quem me fizeste:
abandonar-me-às.
Sexta-feira, dia 13.
Ok, dia normal, pelo menos para mim que nem sequer sou supersticiosa. Certo que
o meu gato não é totalmente preto, mas não tenho culpa alguma disso; também não
passo por baixo das escadas que vão para o sótão, só porque logo a seguir está
uma parede.
Isto para dizer que
há uma semana que ando de volta do quintal. Tirei as portas de um telheiro;
limei frestas, lixei as traves; saquei
da fechadura; despejei o dito telheiro (fugi de aranhas arraçadas de tarântulas);
tropecei em vasos de geração espontânea; mudei plantas (dei pulos gritantes, ao
sacudir dos cabelos aranhiços saídos de uma guerra, camuflados de plantas); pintei
a parede do fundo do malfadado telheiro; troquei quinhentas vezes a disposição
dos três únicos móveis que por lá habitam (fugi de tarântulas disfarçadas de
aranhas); pendurei fios eléctricos; arrasei os rins a esfregar com lixívia o
chão do quintal; troquei de mangueira e isolei todas as junções: já não há pingos
a fugirem para lado algum. No exterior, cortei a relva, adubei, cortei sebes, e
passeei a máquina de corte pela calçada, aparando as ervas daninhas: não sei da
sachola.
Todas as noites
atafulhava o local com os objectos espalhados e fechava as portas, para no dia
seguinte retirar tudo de novo. Mas consegui catalogar caixas e tornar mais
fácil as minhas buscas futuras. Finalmente sei onde estão os seis pares de
luvas de jardinagem, as três vassourinhas, duas bombas manuais de encher pneus
de bicicleta e uma de pé. Descobri que fiz bem em não deitar fora a serra
eléctrica, porque afinal ainda existe a peça onde encaixa a corrente e que sou
dona de alguns vasos – de variadíssimos tamanhos (depois de ter sacrificado a
caneca do leite para salvar uma roseira).
Parecia um puzzle, cada
vez com menos peças (graças ao caixote do lixo público), mas mais organizado.
Hoje, finalmente -
dia 13, sexta-feira -, pintei as portas com bondex e a fechadura com tinta -verde
musgo - anti-ferrugem. Aparafusei a fechadura,
com toda a força, lutando contra a resistência da madeira e enquanto,
orgulhosamente, enxugava as gotinhas de suor da testa, olhei a parte da frente
da porta e percebi que aqueles deveriam
ser os parafusos das prateleiras colocadas no lixo: sobravam cerca de meio
centímetro. Retirei a fechadura, não sem antes dar cabo de duas pontas de chave
de estrela e recoloquei –a com parafusos menores. Fechei as portas: trincos
interiores e fechadura de lingueta normal. Livrei a mesa do quintal das mil ferramentas e
sentei-me orgulhosa, com pequeninas dúvidas, estilo: por que raio sobram sempre
parafusos? Terei feito bem em deitar tanta coisa fora? Será que devo ir
espreitar o contentor do lixo? Só para ter a certeza…
Fui interrompida pela
lata de tinta verde musgo, airosamente em cima da churrasqueira, a pedir que a guardasse
no telheiro. Levantei-me, tentei abrir a fechadura. Não cedeu. Forcei – que eu
não desisto facilmente, pelo menos até… a chave partir.
E NÃO TENHO OUTRA!
Hoje - sexta-feira,
dia 13 – não terminei as tarefas com a entrada da noite. Abandonei a latinha de
tinta verde musgo, na churrasqueira (tem tudo a ver), fui para casa e dei
comigo a espreitar as portas do telheiro com a ingrata fechadura.
Resolvi – não porque seja sexta-feira, dia 13 – aguardar
o sábado, dia 14, com imposta serenidade.
Olho atentamente em redor: placares
gigantes de cores apelativas; rostos lindos, com sorrisos pepsodent; preços,
muitos preços e descontos e setas a indicar direcções e destinos, com letrinhas
a identificar os locais que, de tanto as ler, me parece já ter visitado.
O som de uma música dos Trovante entra
suavemente nos meus ouvidos. O público canta em uníssono, sem enganos.
E espanto-me por não saber a letra da
canção.
Caminho em direcção ao metro. Desço
escadas que parecem não terem fim.
No canto do costume, encostado a um pilar,
o cego canta números da lotaria.
Por mim, passam as gentes apressadas,
entre os quais aquele senhor enorme, de sobretudo azul escuro que, todas as
manhãs, passeia um pequenino saco azul turquesa, onde – tenho a certeza –
guarda o almoço.
E todas as manhãs me espanto com aquela
altura humana e com o pequenino e balançante saco azul turquesa na sua mão.
Obrigo-me a olhar com atenção, a ouvir com
atenção, a sentir com atenção.
E espanto-me ao perceber que passo a vida
a pisar terrenos novos, a ouvir músicas novas, a ver coisas e pessoas pela
primeira vez. E tudo é novo para mim, sempre novo, ainda que todos me digam que
é repetido.
P.S. - Foi já esta música referenciada (e hoje colocada) num post que escrevi no início da existência destes meus "Pequenos Mundos". Sempre que a canto ou oiço lembro a minha querida amiga Raquel e as saudades que tenho de nós.
Grupo, mais ou menos aberto,
com sócios baldas e lapas dispostas a ir até ao fim do mundo.
Objectivo: Conhecer as
tascas e tabernas de Portugal (por enquanto).
1ª
Tasca: “Esquina da Fé” – 25 de Janeiro
Presentes: Eu, Sarita,
Compadre Duarte, Paula, Miguéns e Rute.
O que verdadeiramente
interessa, nestas incursões inventadas, é a diversão, o convívio amalucado,
regado com larachas, risos, cumplicidades de olhares agaiatados, constantes
partidas, mas também, escutas interessadas de palavras a sair em desabafos,
conversas de remar contra as marés, pedidos de desculpa e de compreensão,
acusações, catarses subliminares gritadas em silêncios, mas a pairarem nos
ares, prestes a rebentarem e só travadas pela boa onda que o pessoal possui.
Faz parte o caminharmos,
tirar fotos (para avaliação em concurso, lá mais para a frente).
Nesta noite de frio e chuva
miúda pensou-se ainda em visitarmos o Hot Club ou outro bar afim.
Lá fui eu apanhar o comboio
até Lisboa. O frio húmido encrespou-me o cabelo, submetido à carapuça do blusão
(estilo esquimó), por isso, ao chegar ao Rossio – e porque nunca vejo um palmo
à frente do nariz - passei pelo Duarte e
Paula sem que eles me reconhecessem. Valeu-nos os telemóveis para percebermos
que estávamos à frente uns de outra. E foi o início da noite, em risadas e boa
disposição.
Rodeámos o Rossio, de luzes
taciturnas a brilharem entre galhos sem
folhas;
tirámos fotografias (mais ou menos à toa, falo por mim):
a bolas
de mármore plantadas em alguns passeios;
a arcadas; a sem-abrigo deitado sob
uma simples manta;
às luzes alaranjadas a vestirem as ameias do Castelo de São
Jorge; a bocas de incêndio magras e vermelhas (com e sem tampa);
a pedras de
calçada tão típicas desta cidade que amamos;
a pessoas que se adiantavam ao disparo
da máquina fotográfica.
Placidamente, trepámos a
avenida da Liberdade e abancámos numa esplanada, onde a música nos abraçou, ao
mesmo tempo que o radiador (dependurado no chapéu de esplanada) expulsava um
calorzinho com sabor a vermelho arroxeado.
Algumas fotografias e risadas
depois, apareceram a Rute e o Miguéns, já não a tempo de provar a saborosa
fatia de bolo de chocolate (azar!).
Às 20H: ala que se faz tarde e frio.
Combinámos com a Sarita que se dirigisse à taberna, a residir ali perto. Virámos pela Rua das pretas,
1ª à esquerda, andar um pedacito, 1ª à
direita e lá encontrámos a Rua da Fé, colocada em descida abrupta, ladeada de
paredes antigas, com uma delas a engolir a nossa tasca. Após uns degraus e
passagem por um corta vento, continuámos por entre um longo balcão e umas mesas enfileiradas. Ao fundo: o nosso recanto de paredes com tijolo, xisto e madeira com
velatura esbranquiçada.
Logo à esquerda as nossas mesas
aguardavam-nos. Preparadas para 8 pessoas, apenas 3 delas tinham, sob a toalha
branca, pratos, talheres e copos. O Mika e a Olga faltaram ao evento. O motivo
deu pano para mangas de risadas. Segundo o compadre (que já se pronunciara na
nossa página “Arrota TT”):
“Kick-off é o mesmo que " pontapé no cu" mas mais fino....e
é o que os gringos fazem para pôr o pessoal a bulir!Enviado do meu Optimus San Remo”
A Sarita chegou pouco
depois, salva por um toque de telemóvel de uma mocita que assolara à porta da
tasca, bem no momento em que ela me ligava, fazendo-a olhar na direcção certa.
Foi assim que dei com duas desconhecidas a falarem animadas.
A sua chegada fez-se em
cumprimentos cheios de risos, já com estórias a serem contadas: a ida do
compadre à pequenina casa-de-banho da senhoras, a fechar a porta em fole e –
após passinhos de ballet para se virar no reduzido espaço, sem tocar na sanita –
a não entender o motivo do quase furinho a meio da porta, perfeitamente boleado, do tamanhinho de um dedo. Depois, teve de a abrir. Ao sair para o cubículo, encontrou a Paula a rir, por ter dado de caras (por
sua vez) com um urinol na casa-de-banho que restava.
.
Fotografias e mais
fotografias: às paredes, às molduras com recortes de jornais e notícias idosas;
aos espelhos, candelabros e lanternas, em ferro forjado;
ao fundo esquerdo da taberna,
ao centro e ao fundo direito, a desembocar em degraus encimados com tijolos de vidro;
à fotografia da Irene
Isidro (artista de teatro, já falecida – disseram-me depois); aos pratos e talheres dourados;
a nós e a eles; ao chão, que me relembrou a meninice;
a tudo.
No meu caso,
quase não se aproveitou nenhuma (tremidas, uffff) e matei a bateria, o que foi
uma grande chatice no futuro da noite, com tanto para gravar.
Foram pedidas 3 doses:
bacalhau à lagareiro, polvo à lagareiro e espetadas de tamboril e gambas, tudo
com batatinhas assadas e legumes, alguns jarros de tinto, a que precederam 2
dúzias de quentes croquetes, pão saloio com fartura, queijinhos, patês,
manteigas. No final, eu e a Sarita (que está cada vez mais bonita), comemos
uma fatia de pudim caseiro. O jantar foi uma delícia (eu ainda roubei umas
rodelas de polvo da mesa ao lado, só para provar).
O empregado (que creio ser o
dono) teve de ser placado para nos ouvir. Causa: possível, mas não apurada,
surdez. Só consegui apanhá-lo de costas.
O Miguéns, com o seu belo e
gabado “tele-inter-cyber-cristal-what do you wanna know– birth-astral”
aparelho, fez leituras de mapa astral do pessoal, sem conseguir evitar os
protestos ciumentos, ciosos de saber um futuro desconhecido, mas que se
pretende feliz. Ficámos a saber das 7 casas sobre Saturno, com cruzamentos de
Marte e de Vénus a saírem de órbita e a provocarem Júpiter, por sua vez, influenciado
pelos anéis magnéticos de Urano que achincalha – lá de longe – o Sol,
provocando-lhe contínuos desaparecimentos e inchaços de raiva na Lua que adora
estar na casa 31, dentro de uma tasquinha qualquer a presenciar os anseios e expectantes olhares de amigos barulhentos.
E perguntou-se
(indirectamente) pela solidão e (directamente) pelos filhos que tanto amamos e
piscámos os olhos e tivemos vontade (pelo menos eu) de roubar o dito aparelho e
fugir a sete pés.
Com tanta pergunta o tempo
passou e o Hot Club foi com ele. Pagámos cerca de 15,00€ por cabeça, o que
considerámos barato, despedimo-nos da asseada tasquinha e do seu dono com (repito, não
comprovada) surdez.
Entrámos na noite adentro,
com frio, mas quentes olhares pelo que esta maravilhosa cidade nos dá a
descobrir como nosso: igrejas, fachadas, casas com história. As calçadas foram
palmilhadas com pés doridos (estaremos a ficar velhotes?), em busca de um bar –
supostamente encalhado entre edifícios antigos, com entrada por um vão de
escada: Nada!
Virámos em direcção ao
Condes e entrámos no Hard Rock.
Trip completa!
Começo por dizer que “É CARO COM’Ó
CARAÇAS!”, mas que valeu a pena, valeu. Proporcionou consideráveis gastos de
energia, pelo menos a mim e ao Miguéns. Após uma visita rápida pelas imponentes
instalações de corajosas e megas decorações, sentámo-nos a uma mesa, num mini
palco, onde se encontrava o disk-jockey, ou melhor, o disk-pc, ou jockey-pc, sei
lá que nome dar-lhe. Por cima, um amputado carro, a sair da parede. Certo é que
a música esteve do melhor, com incursões (sobretudo) pelos saudosos anos ‘80s.
Claro que o corpo não se deixou ficar quietinho - pelo menos da cintura para cima.
Diferenças entre mim e o meu
amigo Miguéns, enquanto irrequietos dançarinos, cheios de bicho-carpinteiro: a
minha suposta dança, ainda que com ritmo, faz-se à toa, ao sabor de sentires
vários, somados a catrefadas de lembranças: um autêntico despir de alma (e
também de camisola); o Miguéns é a dança todo ele, a música disfarçada de
pessoa; o ritmo a ditar deixas teatrais; o rosto a transfigurar-se em arte
dramática e o corpo a lançar desafios entre o estático e as movimentações
repentinas, geniais e humorísticas. Ou seja: mim = a diamante brutalhado;
Miguéns = diamante super precioso e lapidado. As energias foram idênticas,
mostradas num dançar imparável. Mímica, mímica e mímica e gritos súbitos com o
nome dos cantores e grupos, a ponto do disk-qualquer-coisa se virar várias
vezes para nós e comentar: “Vocês sabem-nas todas… vão para a pista dançar!”. E
nós orgulhosos a aplicarmo-nos nas gavetas das recordações e a bebermos o único
copo de bebida que cada um pediu.
Já disse que é “CARO COM’Ó CARAÇAS?”. Os restantes do grupo,
abanaram carolas, riram connosco, fizeram comentários, olharam para o lado
contrário ao nosso e, por isso, deram conta quando um grupo de empregadas do
Hard-Rock, fardadas, subiram ao nosso palco e - em movimentos mais ou menos
sincronizados - dançaram o “YMCA” dos
Village People, a que não faltaram palmadas nos próprios rabos. Tudo a fazer lembrar um bar americano, cheio de assobios de
cowboys, com tiros pelo ar a partir imensas garrafas de whiskies e esporas a
cravarem-se no chão. Como adorava ser novita e andar ali, pelo meio, a dançar e
a sentir-me uma estrela… Onde ia eu? Ahhh: a conta? Bem, o compadre perdeu a
cabeça e desapareceu diante agradecimentos silenciosos. Creio que queríamos
dar-lhe a hipótese de se arrepender, mas o nosso generoso e genuíno amigo
apareceu, sorridente e a balançar as ancas.
Saímos com a dose certa, a
gingar por entre mesas, e pessoas e pessoal da casa que, se não estiverem a ser
escravizados (filmes ou realidades a mais?), sobravam em simpatia e à-vontade.
De novo abraçámos a noite de
Lisboa, partilhámos os sorrisos e boa disposição e, já do outro lado da grandiosa
avenida, despedimo-nos, não sem antes relembramos a vontade de conhecer outra
tasquinha.
Que é assim como quem diz: estarmos juntos de novo!