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23 fevereiro 2006

Eu e Tu...


Continuo a largar uma ou outra lágrima (porque travo a choradeira) sempre que me é dada a oportunidade de viajar pelo mundo profundo da existência alheia. Na leitura isso acontece-me, conquanto as linhas que leia me transmitam vida, solidão, ou outros sentimentos profundos que me façam voar ou cair no fosso de mim mesma.

Parece-me ler as intenções da sua escrita, tocar na alma desses seres humanos, poetas, escritores artistas e aconchegar as minhas dúvidas e tristezas. Imagino-me lado a lado, a passear com eles pelos locais que descrevem, a ver o que tanto conhecem. Fico mais sensível apetece-me escrever a todos eles, mesmo aos que já não moram neste mundo, aqueles que fisicamente nos deixaram e não sabemos se continuam a sentir algo no local para onde foram, ou se apenas jazem inertes, de ideias paradas, pensamentos mortos.

Pois é, sonho em correr ao seu lado, em beber e fumar extasiada, fazer de palhaça séria ou menos séria, ser ouvida, chorar e ouvir seus choros, lamentar-me nos seus lamentos, sentar-me na beira da calçada com eles e gritar olhando o Céu estrelado.

Ridículo estes pensamentos???? Sei lá... sei que os seres humanos a que me refiro, enquanto escritores são perfeitos e me cativam. Bebo as suas palavras e anseio o momento em que as minhas surjam. Vibro na discussão e imagino as faces coradas de prazer e o ar protector dos iluminados olhando para mim, como se uma mascote fosse. E gosto do mimo, e gosto do meu gostar, simples e repleto de admiração.

O mundo pessoal de cada um, aquele onde os cheiros ganham vida e os sons nos trespassam o entendimento, raramente cativam tanto quanto o imaginário criado pelos olhos da leitura.

Assim os deixei passar, a eles ídolos da minha imaginação, e creio nunca me ter dado oportunidade de me deliciar com tamanho mundo, por medo da delícia ter pés de barro e esses seres fantásticos revelarem o seu íntimo, nicotinoso e alcoolizado, cheio de vícios horrendos, onde o extraordinário se transforma em ordinário, e nos obriga a olhar bem para dentro de nós e sentir que a esperança de conhecermos o “belo” é uma fraude.

03 fevereiro 2006

Sempre a Música




O simples impacto das golfadas de húmido ar nas faces desvanecia o cansaço daquele corpo cansado. Os passos leves e apressados transmitiam-lhe a graciosidade de uma dança, o que a fez parar com medo que tal estivesse a acontecer, algo nada impossível, já que a música que escutava através do seu inseparável aparelhinho de mp3 a poderia induzir a bambolear-se, provocando uma situação constrangedora, por entre as gentes que por ela passavam. Gostaria de ser invisível, ou que as outras pessoas parassem no tempo e no espaço, possibilitando-lhe dançar, seguindo alegremente o seu caminho, assim como certos anúncios de televisão em que, de um momento para o outro, todos ficam estáticos, e apenas uma pessoa prossegue, graciosa, por entre todos, com ar leve e dançante.

Teria de se contentar com os céleres e misturados pensamentos e pelas lembranças desgarradas. As poças de água, fruto da recente noite chuvosa, vinham mesmo a calhar, permitindo-lhe saltar. Pulo aqui e ali, de corpo projectado para a frente ou ligeiramente de lado... vontade, vontadinha era a de rodopiar, mas seria demais, ok, contentava-se com os pulinhos.

A vida não tinha sido fácil para ela, mas ia-se resolvendo e sentia que valia a pena viver, ainda que não soubesse se era feliz. Felicidade... quantas vezes pensou nesse sentimento difícil de entender, de definir. Felicidade... para ela, era também isolar-se de tudo e de todos e sentir o que sentia naquele exacto momento, ao ouvir a sua música, ao caminhar pulando poças de água, se bem que o guarda chuva a incomodasse, a mala a tiracolo, que teimava em descair, lhe travasse os movimentos, emprestando uma postura desnivelada ao corpo, e o saco, aquele maldito saco de papel, carregado de códigos massudos, ameaçasse abrir-se, fazendo-a tropeçar.

Sabia ser desajeitada, mas à sua maneira era airosa, pelo menos assim se julgava.

As botas de camurça castanha sob as pernas das calças pretas, o blusão castanho de imitada pele, puído, de que tanto gostava, faziam-na segura de si, sentir-se bem na sua própria pele.

Como a vida pode ser bonita por entre cinzentos tons molhados.

Atravessou as rua de forma caótica, sem respeito pelas regras, por entre autocarros apinhados e carros apressados. Viu a sua minúscula figura recortar-se velozmente nos edifícios altos da cidade, alguns de pintura decadente, outros de azulejos coloridos, outros espelhados. Recusava olhar para os espelhos das fachadas por medo de quebrar a imagem gaiata que fazia de si própria. Coisa mais desagradável... olhar e ver que toda a sua vontade de viver, todo aquele sentimento lindo de felicidade, poderiam ser contrariados pelos sulcos que sabia ladear-lhe os lábios, ou pelo tom empalidecido da sua tez, ou ainda pelos olhos apequenados pela vermelhidão de noites mal dormidas. Não! Nada de olhar... melhor seria continuar naquela jovialidade onde o ridículo tem medida incerta. Proibidos também os debates interiores. Apenas pensamentos positivos, apenas a sua música, apenas os graciosos pulos desconjuntados e a enorme vontade de viver e sonhar.

Upss... chegou ao seu destino. Rompeu por entre os que aguardavam a abertura da repartição pública, onde assistia a uma acção de formação. Nas suas costas ficaram as paradas pessoas de olhares ansiosos.

Entrou, olhou à sua volta e percebeu o quanto era banal. Despiu a sua juventude no desligar da música. Hora de descer à terra, hora de se resumir a comum e simples mortal.