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26 abril 2006

Ganhei um Novo Amigo - V


Foto de: Luís Pereira

Julguei nunca mais ver o meu querido amigo. As sandes que lhe destinava ficavam no saco, de um dia para o outro, enrijecendo, acabando por ser comidas por mim, ou deitadas fora. Do meu pequeno nem sinais de vida e um sentimento de revolta avolumou-se junto com a tristeza pela sua ausência. Pensei procurá-lo junto dos revisores dos caminhos de ferro, mas não o fiz. O simples imaginar que tivesse regressado ao seu país fazia-me mal. Até que o voltei a ver. Não coube em mim de contentamento.

Alessandro, de braços abertos, segurava os ferros dos assentos do comboio, tapando o corredor com o seu corpito. A sua mão esquerda envolvia um dos suportes mesmo ao lado do assento que escolhi para repousar este corpo mal descansado. Olhava em frente, não me viu, por pouco também eu não o via, absorta que ía em vazios pensamentos. Senti a sua presença, não sei como, numa necessidade de olhar para o lado, abrindo os olhos que teimavam em fechar. Vi a sua figura estática de homenzinho pequeno. Sem pensar, debrucei-me sob o lugar vago e agarrei o seu pulso. Baixou os olhos na direcção da minha mão, só depois olhou para mim. Um largo sorriso se abriu e eu ri de contentamento. Falámos ao mesmo tempo, rimos os dois. Soltou-se de mim e, colocando as mãos na cintura, de braços arqueados, semblante carregado, sobrepôs a sua voz à minha, num ralhete que me aqueceu a alma.

- Por onde tens andado?

- Eu ando todos os dias no comboio... não te tenho visto – respondi, prontamente - E tu, por onde andas?.

No silêncio que se seguiu adivinhei o espanto de ambos. Afinal apenas nos desencontrámos, mas lembrámo-nos um do outro e isso, para mim, tornou-me mais rica, mais forte, mais segura, aqueceu o meu interior. Aquele ser, criança, lembrou-se de mim, sentiu a minha falta. Que bom, que delícia. Também eu faço parte do seu mundo, quero sempre fazê-lo.

Bati levemente no assento ao lado do meu, pedindo-lhe que se sentasse. Fê-lo, pouco à vontade, balançando nervosamente as pernitas, olhando sorrateiramente para mim. Os olhos castalhos escuros brilhavam. Por entre um sorriso calmo que adoptou, apercebi-me do mau estado de alguns dentitos. Quantos cuidados precisa aquele menino.

Olhou para mim inquiridor. Baixei os olhos até ao montinho de papéis sebentos que agarrava. Sem permissão, levantei-lhe a manga da camisolita branca de lã. Às minhas narinas chegou um cheiro fortíssimo a sarro. Alessandro respira e fez-me respirar a incómoda marca da ausência de cuidados básicos de higiéne. O seu odor invadiu de tal forma o espaço que me incomodou pensar que ele sentisse o meu cheiro a lavado a que adiciono perfume. No pulso magro vejo o seu relógio .

- Vamos ver? - perguntei-lhe.

- Sim! – respondeu de imediato.

Lembrei-me que tinha mudado de telemóvel e receei que as horas já não coincidissem.

- 14 e 50... - disse-lhe a medo.

Levantou o bracito à altura dos meus olhos e, aliviada, vi a concordância das mesmas. O seu rosto moreníssimo olhou-me e na meigura do seu olhar percebi que aguardava que lhe dissesse algo.

- Certíssimo... nunca falha esse teu lindo relógio.

Sorriu orgulhoso enquanto limpava o mostrador com a manga suja da camisola.

- Julguei que tivesses regressado ao teu país Alessandro...

- Como? Não temos dinheiro... – disse, interrompendo-me, espantado.

- Tu queres regressar? - perguntei-lhe segurando a sua mão.

- Não – balbuciou e, levantando-se, delicadamente retirou a sua mão das minhas.

- Espera – disse-lhe, enquanto procurava uma moeda para lhe dar.

Aguardou de pé, distante. Alessandro terminara o seu período de pausa, entendi que o meu tempo também terminara, ele .não conversaria mais. Percebi que entrara, mais uma vez, no seu mundo proibido, onde ainda não tenho lugar. Estendi-lhe a moeda.

- Até amanhã Alessandro, espero encontrar-te por aqui.

Sorriu-me enquanto iniciava a sua distribuição de chorosos papelitos. É curioso como olha para mim no desempenho da sua tarefa. Sinto que quer guardar a minha imagem. Como gostaria de o acompanhar. Que pensará aquela cabecinha? De cada vez que o vejo repetem-se as sensações de alegria, tristeza e impotência. Não sei o que fazer.

Alessandro inverteu a sua marcha, saiu por onde houvera entrado, andando de costas, olhando-me sempre. Nos seus lábios o sorriso de novo adeus é apagado pelo fechar das portas da carruagem. Junto de mim e em mim, por mais algum tempo, ficou o seu cheiro, o cheiro da criança que adoro e não sei ajudar.

Um ano passou... rápido e não tornei a ver o Alessandro.

Onde quer que andes, pequenino amigo, espero que estejas bem e que o Deus de que tantos falam, se existir, te ajude.

Se um dia te lembrares de mim, olha o teu relógio, quem sabe, nesse preciso instante, não olharei eu o meu telemóvel ao lembrar-me de ti.

25 abril 2006

Ganhei Um Novo Amigo - IV


Foto de: Luís Garção Nunes

Os dias passaram céleres, vi o Alessandro algumas vezes, sempre fora do comboio, na gare. Várias vezes bati nos vidros das janelas até me aperceber da inutilidade do acto. Alessandro parece sempre absorto num mundo próprio, alheado. Os seus pequenos ombros dobram-se sob o peso de calculáveis dramas. Quisera estar enganada, mas aquele puto faz-me lembrar a minha desprotegida criança e isso entristece-me tanto.

Tenho vontade de correr atrás dele, lhe perguntar onde mora. Levá-lo de mão dada até sua casa, falar com quem de direito e pedir que me deixem cuidar dele. Educá-lo com carinho. Implorar que lhe dêem a oportunidade de crescer um pouco melhor.

Sei que Alessandro não é feliz e o pior é que tenho a certeza que não será por recorrer à caridade. Quando se cresce em determinado ambiente o que nos rodeia tem uma importância relativa, desconhecemos tudo o resto. Tenho medo que o alheamento de Alessandro tenha a ver com maus tratos. Sinto um nó na garganta só de imaginar tal. Não quero pressentir horror nos olhos dele, tão pouco imaginar que aquele corpito possa ser alvo de pancada, mas pior, muito pior, não quero aquela cabecinha a pensar em porquês sem resposta, a relembrar a maldade, a sofrer em pensamento, sem ninguém a quem recorrer, sem sentir nas suas faces festas de carinho. Não o quero só.

De novo a minha pequena criança acorda e se revolta, abana meus nervos, comprime meu coração, grita desesperada e faz-se ouvir nas lágrimas que não contenho, mas de nada serve, porque esta adulta que a alberga sente-se impotente, não sabe o que fazer para ajudar Alessandro.

Cerca de um mês sem ver o puto e, quando menos esperava, surge por entre as gentes, quase não o reparo. Vi-o abrir as portas que dividem as carruagens. De pronto me levantei e pedi licença, atabalhoadamente, com saco e carteira e aparelho de mp3 e guarda-chuva e kispo, tudo mal agarrado em risco de cair. Abro com dificuldade as portas, continuo a pedir licença, sem retirar os olhos dele. Por entre estáticas pessoas a sua figurinha desenha-se em movimento.

– Alessandroooooo... - quase grito.

Olha para trás e sorri-me. Consigo colocar tudo no braço esquerdo e estendo a mão direita que logo agarra. Rimos enquanto as sacudimos exageradamente. Sento-me numa cadeira e olho aquele rostinho sujo que retribui o meu olhar.

- Como estás Alessandro?

Perde o sorriso, baixa os olhos e balbucia um “mais ou menos” enquanto balança a cabecita. De imediato me vira as costas, deixando-me boqueaberta, em choque. Abre caminho por entre as gentes e sai do comboio, sem mais me olhar.

Não esperou a sandes que todos os dias levo na mala, na esperança de o ver, não esperou a moeda, não me deixou recuperar do choque e o tentasse aconchegar. Sairia com ele do comboio. Sentar-me-ia junto a si, num chão, longe dos olhares de quem não vê. Queria que falasse comigo, queria tanto que me contasse as suas tristezas, que soubesse que um dia também eu fui uma criança muito infeliz, que, talvez por isso, de forma egoísta, o entenda. Queria que soubesse que gosto muito dele e que pode sempre contar comigo.

Mas mais que tudo queria ser um ombro amigo, falar-lhe mansamente, fazê-lo sentir que ele é lindo e importante. Transmitir-lhe o valor dos sonhos, abrir um mundo novo para ele.

Não o vi durante mais de um mês e a minha criança, encolhida no seu pequenino espaço, chora, em silêncio, a sua ausência.

24 abril 2006

Ganhei Um Novo Amigo - III



Foto de: Grendel

Estive alguns dias sem ver o Alessandro... até que o reencontrei. Apercebi-me da sua pequena figura enquanto afastava as portas de ligação das carruagens. O meu coração alegrou-se. Um sonoro olá, acompanhado por um sorriso lindo, ouviu-se na minha carruagem.
Enquanto distribuía os seus papelinhos pelos outros utentes olhava para mim sem retirar o sorriso, parecia ter medo que eu saísse sem que ele desse conta.

Aproximou-se. De corpo direito, cabecita levantada, altiva, estendeu-me a mão em cumprimento. Apertei-a suavemente e abanei-a várias vezes, rindo. Levantou o braço e, provocador, perguntou-me as horas. Brinquei enquanto retirava o telemóvel da bolsa.

- Vamos lá ver se ainda está certo... – disse-lhe.

Os olhinhos dele olhavam-me expectantes.

- Meio dia e 42 minutos – informei.

Soltou uma gargalhada, enquanto virava o braço na minha direcção e me mostrava o seu maravilhoso relógio, cujo mostrador, iluminado por uma luz azul, revelava as horas que eu houvera dito. Rimos os dois.

- Alessandro... o teu relógio é o máximo – brinquei, enquanto lhe segurava o bracito.

Coloquei um euro no meio das moedas de 10 e 20 cêntimos que aquela mãozinha continha.

- Uauuuuuuu... – emitiu ele, olhando-me contente, mais que agradecido.

Afastou-se feliz. Pouco depois regressou, rodopiou na minha frente, rindo. Abriu as portas e apontou para a rua.

- Saio nesta... – e sem aguardar a minha resposta - Amanhã vens?... Ciao....

Não sei se ouviu o meu sim... mas decerto viu o meu sorriso e aceno, porque se manteve na gare a abanar as mãos, num adeus imenso, enquanto o seu corpo dava leves pulos e, quando o comboio retomou a sua marcha, ele correu ao seu lado, acenando sempre para mim. Ri satisfeita da sua manifestação.

Adoro aquele puto.

Ganhei Um Novo Amigo - II

Encontrei-o de novo. Gosto de ver o seu sorriso voltado para mim. Mal me viu aproximou-se. Enquanto procurava a moeda que se lhe destinava, conversou comigo. Não resisti - pareço uma daquelas velhas tontas que têm sempre que fazer perguntas às crianças - perguntei-lhe o nome. Endireitou o corpo e olhou-me, sem sorrir.

- Não te lembras?... Alessandro... não te lembras? – perguntou-me no seu português arrevezado.

Juraria que nunca mo dissera, juraria que jamais lho perguntara. Os seus olhos castanhos reflectiram uma tristeza inquiridora, senti a sua desilusão. Dei-lhe uma moeda, afaguei-lhe o braço, o cheiro nauseabundo das suas roupas chegou até mim.

Alessandro, sem me dizer “ciao”, afastou-se. Creio que foi magoado comigo.

21 abril 2006

Ganhei Um Novo Amigo - I


Foto de:

Viajar diariamente em transportes tão lotados como o comboio, metro ou autocarro, cria no ser humano sensações incríveis como raiva surda, ternura, espanto, terror, calma, repugnância ou indignação.

Quando se é obrigado a ficar em filas intermináveis, faça chuva ou faça Sol, se espera minutos que nos parecem horas e se leva com o fumo do cigarro dos utentes da frente; quando os transportes teimam em não cumprir o horário e sabemos que o ar a respirar dentro dele será invadido por mais umas boas dezenas largas de pessoas (que nem sempre cumprem as regras da boa higiene); quando esse ar é constantemente agredido por espirros, tosses, mau hálito; quando somos pisados sem um pedido de desculpa; quando vemos o nosso lugar preferido ser ocupado por alguém que, indelicadamente e por meio de fintas, passa à nossa frente; quando percebemos que não vale a pena protestar, porque nos olham de alto a baixo e, na melhor das hipóteses, nos mandam ir de táxi; quando damos passagem aos que saem primeiro que nós, encolhendo-nos contra os ferros dos assentos e já não conseguimos regressar à posição inicial, mantendo o corpo em torsão até os rins gritarem, porque alguém que não vai sair avançou e estacou precisamente nesse nosso espacinho; quando.... quando.... quando... é inevitável sentirmos algo.

Sem falar daqueles que, despudorados, se encostam demasiado a nós, fazendo-nos encolher ao máximo e levantar os cotovelos bem para trás, na ilusão de criarmos alguma barreira; ou dos que resolvem levantar o braço para se agarrar às argolas penduradas no tecto, agoniando-nos com o cheiro nauseabundo que exalam dos sovacos; ou dos que, deconhecedores da escova de dentes e do fio dental, teimam em tirar parte do pequeno almoço dos dentes, chupando-os ruidosamente, ou, com aquela enorme unha do dedo mindinho, retiram os restos, escancarando a bocarra por onde introduzem o dedo, diante o nosso olhar, primeiro distraído, depois crispado de nojo.

Acredito que estas viagens são um excelente meio de conhecer a natureza humana. Um olhar mais atento poderá enriquecer o imaginário de qualquer um. Sendo o Homem um animal de hábitos, elege uma fila e a ela regressará dia após dia.

Ao fim de algum tempo julgamos estar adaptados e criamos defesas incríveis. Alguns lêem a “Bola” ou o “Record” e trocam impressões, isentas de tendenciosismo, sobre os jogadores, árbitros e técnicas de jogo. Há quem opte por leituras “mais profundas”, como a “Maria”, o “O Crime”, ou o “Sexologia”. Certas senhoras preferem as revistas chiques, onde podem pôr em dia os “reality shows”, ou olhar para as elegantes figuras do mais alto nível social, onde sonham pertencer um dia. Alguns lêem um livrinho e, para que ninguém saiba o título, forram-no com uma folha de papel pardo. Os mais descarados mostram o calhamaço, geralmente best seller... é assim mesmo, não é para todos. Há ainda os que, de pé, lêem os livros, jornais e revistas dos outros, para não terem de olhar para o cocuruto de quem vai sentado. Que diabo, ninguém tem a culpa de os vidros dos transportes serem espelhados, tem de se olhar para algum lado.

Quem consegue um lugar junto de uma janela esquece qualquer tipo de leitura, liga o piloto automático e delicia-se a dormir. Não há barulho que incomode, até embala. Tornou-se vulgar o uso de headphones que permite ao amante da música levar o seu leitor de CDs. Já ninguém protesta do ruído que sai pelos meandros criados entre os auriculares de som e as orelhas. É até engraçado ver o abanar da carola, o bater dos pés, o ritmo bem marcado dos dedos nas pastas ou pernas, demonstra energia, vontade de viver... alegria.

Não raro, principalmente no comboio e metro, o aparecimento dos pedintes. Eles são cegos, doentes do coração, sero-positivos, expatriados (com filhos ou não ao colo), guitarristas ou acordeonistas (com ou sem cão ao ombro, segurando o cestinho das esmolas), crianças... toda uma série de gente que se cruza. Os não pedintes desviam os olhares e raramente dão seja o que for, mas eles não desistem, caramba, é o seu ganha pão. Cada um faz o melhor que sabe e pode.

Eis-me chegada ao intento da minha escrita. Sendo eu, por falta de opção, uma assídua frequentadora dos transportes públicos, sou também das que desvia os olhares de toda aquela gente que me incomoda com o seu pedir. Desvio o olhar, desvio o corpo, desvio tudo o que tiver nas mãos. Não tenho o hábito de dar esmola, essa é que é essa. Sinto-me irritada quando instintivamente, de mão alçada, levanto os olhos do meu livro (sim, que eu também leio nos transportes) e me apercebo que acabei de aceitar mais um daqueles papelinhos com uma história triste de vida. Fico sem jeito e quando tento devolver o papelinho à proveniência, já o desgraçado está em outro sítio e me obriga a esperar o seu regresso. Esta táctica obriga-nos a pensar, mesmo que não queiramos e lá se vai o enredo da nossa leitura, que diabo.

De volta, não vendo moedinha alguma, olham-me com aquele ar reprovador e sofrido, como se fôsse insensível à sua dor e causadora da sua desgraça, o que me cria uma sensação de mau-estar. Ah... mas eu resisto e não dou!

Um dia destes, de regresso a casa, sentadinha junto a uma janela, ouvia música (sim, que também oiço música nos transportes) e lia ao mesmo tempo, só desviando os olhos do livro quando a música me fazia perder um pouco o fio da leitura. Vinha perdida em pensamentos vários, em sonhos e pesadelos, quando uma criança, baixa, moreníssima, de cabelo escuro, quase rapado, de pequenino busso sob o lábio superior se aproximou de mim. Vi que era mais uma daquelas crianças perdidas no mundo da caridade. Olhou-me com os seus olhos castanhos escuros e nada disse. Ao meu redor os bancos estavam vazios e ela depositou sob o que se encontrava mais próximo de mim o dito papel do choradinho. Não liguei. Baixei os olhos e retomei a leitura. De vez em quando olhava o papelito, era uma mancha branca que se destacava da cor verde dos bancos, mais nada, nem me dignei ler.

Minutos depois a criança apareceu e levantou o papel, sem me olhar. Segui a sua pequena figura. De cabeça baixa reunia os seus papéis num montinho. As suas costas curvadas estavam tapadas com um “pull over” coçado cinzento, de malhas saídas e pequenos buracos. Dirigiu-se à porta que divide as carruagens movendo os lábios, com ar zangado. Curiosa, desliguei o meu leitor. O miúdo mudou de ideias, largou as portas já entreabertas e sentou-se num banco perto do meu. Vi-o sacudir as calças azuis, sujas de lama, baixar-se até tocar os ténis de cor indecifrável e puxar os atacadores curtos, partidos, numa tentativa de os atacar. Endireitou-se e com a mão direita arregaçou a manga do braço esquerdo, pondo à vista um relógio no seu pulso magro. Parecia um daqueles relógios saídos nas bolas de plástico que certos cafés “oferecem” após a inserção de uma moeda de um euro. Levantou o braço esquerdo à altura dos olhos e perguntou-me as horas. Tirei o telemóvel da bolsa e disse-lhe serem 3h e 15m da tarde. Sem agradecer, olhou o seu relógio, baixou e levantou várias vezes a cabecita e perguntou-me os segundos. Disse-lhe que não sabia. Fez um pequeno ahhhh desolado e encostou-se, de olhar vago, pernas a balouçar, lábios a abrir e fechar sem que eu entendesse o que dizia.

Duas paragens depois, levantou-se, olhou de novo para mim enquanto abria as portas e me dizia “Ciao”. Acenei-lhe com a mão que tinha livre, creio ter-lhe feito um pequeno sorriso. Desapareceu, deixando-me destroçada, com vontade de chorar.

Que raio de mundo este em que vivemos em anomia completa, numa sociedade providência com tendência a desaparecer. Fiquei triste pela sorte daquele miúdo, pela sorte de todos os miúdos que são obrigados a pedir para sustentar a família. Sim, que este decerto não era drogado. Lembrei-me dos “Capitães da Areia” de Jorge Amado, do mundo incrível e adulto que uma criança, sem direito a ser criança, é obrigada a viver. Pensei na possibilidade enorme de miúdos como aquele crescerem sem a noção de dignidade e na quase impossibilidade de se desmarginalizarem. Pensei nos desvios que a sorte lhes concedeu, nas alternativas quase nulas de sucesso. Pensei no frio, no mau cheiro, nos piolhos, na linguagem ordinária, na ausência de sonhos, na fome, na miséria, nos maus tratos, na tristeza, no morrer sem ter direito à vida.

Hoje, em outro horário, o mesmo miúdo cruzou-se comigo no comboio. Vi-o com os seus papelitos na mão, distribuindo-os pelos meus vizinhos. A mesma roupa, os mesmos ténis. Reparou em mim quando já desviava o seu olhar. Rapidamente voltou a cara para mim e abriu um largo sorriso enquanto dizia olá e acenava com a mão. Sorri e acenei-lhe também. Sentou-se ao meu lado, calado, sem me dar papel algum. Fiz-lhe uma festa no ombro enquanto lhe perguntava as horas. Orgulhosamente, destapou o seu maravilhoso relógio e respondeu-me. As pernas balançavam batendo com força no lugar onde se sentara. Sorri-lhe. Tirei o telemóvel e comprovei rindo que estava igual ao meu. Mostrei-lhe. Ele levantou o seu dedinho sujo à altura do nariz e disse-me que o dele era melhor, porque tinha segundos. Tive vontade de o abraçar, mas ogo ele se levantou e disse-me “ciao”. Recolheu os papéis que distribuíra e, quando passou por mim, não resisti e dei-lhe uma moeda. De olhinhos brilhantes e meio fechados, sorriu e disse-me “Até amanhã”.

06 abril 2006

Cigana




Na sala escolheu um CD de seu agrado... daqueles que a punham freneticamente a dançar... Paco de Lucia... colocou-o e preparou-se, dançaria até se esgotar.

O som estava alto e fechando os olhos escutou aquele dedilhar, inicialmente calmo de guitarras, contrariado segundos depois pelo crescendo do som. Sentia o seu sangue correr mais veloz. Levantava um braço e imitava as ciganas. O corpo gingava e a cabeça era projectada continuamente para trás, altiva e graciosamente, enquanto os pés davam passos pequenos mas rápidos, ora para a frente, ora para trás, e os braços se trocavam e o corpo se torcia e rodopiava.

A voz masculina aciganada fazia-se ouvir e ela sobrepunha a dela, forte. O mundo tomava formas diferentes... a forma da liberdade... ela era livre, sentia-se livre, jamais se sentiria aprisionada. Um salto do degrau da sala para o piso mais baixo, novo salto, desta vez para cima da arca bem defronte à lareira, onde continuou a sua dança... parecia ter asas nos pés, sentia-se leve. Novo salto para o chão da sala... calcanhares a bater o ritmo, o corpo ligeiramente de lado, quase estático, braços ligeiramente levantados, olhos sobre o ombro esquerdo que se levantava e baixava ao ritmo da música. As flautas a acompanhar o som cadenciado das guitarras, o contrabaixo a marcar o compasso, a cintura dela a dobrar-se, pendendo-lhe a cabeça sobre as costas, quase até à cintura... De repente o endireitar-se e a altivez a sobressair em gestos entrecortados com a quietude de todo o seu corpo, para logo de seguida abrir os braços ao nível do tronco e balançar-se de um lado ao outro, em movimentos rápidos, mas curtos.

A sua imaginação voava... via-se entre ciganos, numa noite cuja escuridão era contrariada pela luz quente das fogueiras. Os homens a tocar as suas guitarras, enquanto gingavam os corpos vestidos de camisas brancas ou coletes escuros sobre a pele. Deixavam cair continuamente a cabeça sob as guitarras por onde os dedos calejados faziam silvar as cordas metálicas. Os pés, calçados com grossas botas, batiam forte no chão arenoso, levantando uma fina poeira. A luz das fogueiras emprestava um tom acobreado às suas peles morenas, abrilhantadas de gotas de suor. Era um cantar forte o deles, gutural, cheio de trejeitos e arrastamentos de som, por vezes requebrado, como o sofrimento, como a dor, como a lembrança e o esquecimento... cheios de vida.

O ressurgimento dela, segurando as sete saias, bamboleando o corpo, de cabelo apanhado num carrapito, por onde se escapavam algumas melenas sobre o rosto e pescoço. Vários colares caíam sobre o colo moreno onde sobressaíam os seus peitos. Nas mãos os anéis e pulseiras tilintavam ao ritmo da música e da dança... Yo solo quiero caminar... cantava em arrepios contínuos. Imaginava os seus olhos negros, escuros como a noite, brilhantes como uma jóia, cheios de vida e desdém. Vinha carregada de amor disfarçado, cheia de liberdade e certezas, altiva, encantadora e misteriosa. As mãos batendo palmas acima da cabeça, acompanhando aquele som vibrante que a incendiava. A liberdade de dançar descalça, sem dor, sob o céu atento, onde as estrelas, envergonhadas da sua beleza e altivez, se escondiam por detrás de núvens enormes, também elas escuras a fim de se confundirem com a noite. Respirava forte, fazendo as narinas abrir e fechar, em esforço.

Permitia suavemente enlaçar-se por um cigano que a fazia rodar, para logo de seguida fugir a esse mesmo abraço, desdenhosa. O crispar de todos os músculos do rosto e de repente já não era ela... de repente já não era a cigana... de repente era som, era sangue, era orgulho, era vaidade, era fortaleza, era o recomeço de uma reestruturação que entrava nela através do canto, através da mímica, através da dança, através de um sentir verdadeiro, único, só seu...

Como era bom reencontrar-se...