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17 março 2008

Casos de Vida



Entro numa carruagem do comboio das 20h22m, procuro um lugar que me permita estar à vontade, retiro o jornal e o ipod e preparo-me para o meu momento de absoluto isolamento.

De repente, à minha esquerda, nos lugares virados para mim, alguém se senta. Vejo-lhe as calças azuis escuras, com o logótipo da Adidas, a criar fole nos tornozelos, seguidos de uns ténis sujos. Sem levantar os olhos, tento abstrair-me do som enfadado que o sujeito faz ao largar abruptamente a mala no lugar ao lado do meu. Percebo que se recosta ao ver-lhe as pernas estendidas e o bico dos ténis levantados.

Não quero que perceba que o olho. A mão esquerda tem-na no bolso do blusão de cor escura, brincando com algo que pode ser uma chave ou uma simples bola de papel. De soslaio, porque sinto o cheiro a sarro (que me leva até ti, meu querido Alessandro), permito-me levantar o rosto do jornal. Tem um rosto magro, muito moreno, com uma ou outra verruga, um rosto de jovem envelhecido, de alguém que não soube cuidar de si e se entregou a excessos pouco saudáveis. Um gorro cinzento cobre-lhe a cabeça e termina num pompom.

“- Anda lá… Costa… põe-te a andar, que tenho pressa…” - mistura ele a sua voz à minha música.

Como se tivesse ouvido, o maquinista retoma a marcha do comboio.

Com gestos bruscos, debruça-se sob a mala e retira uns papéis mal tratados.

“- Que temos aqui?... Eh pá… Finanças… ena páááá… fonix… tás-te a esticar.. enaaaaa… não querem mai nada?!...” – diz, juntando ao monólogo umas imprecações da berra.

A esta altura já eu pensava agarrar nas minhas coisinhas e saltar por cima das suas pernas, procurando um lugar mais sossegadito e “seguro”, mas fiquei. Com o cotovelo apoiado ao rebordo da janela, mantinha a cabeça apoiada na mão direita e na outra o jornal, numa pose que pretendia ser descontraída, mas que contrastava com um interior em desassossego. A tendência para certas pessoas se sentarem perto de mim existe há muito e nunca sei qual o desfecho destas situações.

“- Eh pá…. Amadora… já cheguei… porra…” – diz enquanto guarda rapidamente a papelada na mala.

“- Resto de boa viagem, minha senhora.” – deseja-me, esboçando um sorriso desdentado.

Sorrio-lhe e agradeço, olhando-o nos olhos encovados e mortos.

Levanta-se e já pronto a abrir a porta de saída, olha para trás, para mim que, aliviada, mantenho ainda o sorriso e a pose.

É já numa mistura de pensamentos que o resto da minha viagem se faz.

Como seria este indivíduo se a sua vida tivesse tomado um rumo diferente? Ter-me-ia desejado um resto de boa viagem?, ter-lhe-ia eu sorrido?

14 março 2008

Lembrancinha





Sempre tive receio que de frente me olhasses
assim…
bem de frente e com a luz do dia a cegar-me.

Receio de todos os meus defeitos perceberes:
os sulcos em forma de rugas, a flacidez da pele amarelecida…

Também por isso, segurei tuas mãos
naquela esplanada com cheiro a mar
e, com insegurança, deixei teus olhos nos meus poisar,
dessa forma saberia por onde andava teu olhar.

Só não aguentei tamanho brilho.
Pareceu-me admiração, amor, desejo… e baixei o rosto em aflição.

Foi também por mais isso que me levantei
e, em rápidos passos, me coloquei por detrás de ti
sem deixar que te virasses, e de novo me olhasses.

Abracei-te então,
e meu rosto, encoberto pelo cabelo, poisou tua nuca.

Foi um abraço sentido, cheio de carinho, medo, esperança e confusão.