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02 novembro 2013

O Dia de Finados Está Moribundo

Hoje é dia 1 de Novembro, dia de finados.

Pela primeira vez (que me lembre) não é feriado. Neste dia, todos os anos, várias crianças gritam: "Pão por Deus", enquanto, em bandos e por entre risadas ansiosas, tocam as campainhas insistentemente.

Por estar de folga, fui - como é meu hábito - comprar doçarias para a criançada. Coloquei numa taça: chupa-chupas; rebuçados; gomas com formas de dentaduras de vampiros, fantasminhas, máscaras, caveiras...

Hoje, pela primeira vez, desde há muitos anos, na minha taça  subsistem imensas guloseimas. Durante o dia, fui espreitando por entre os ferros do portão e apenas vi o imenso vazio de crianças. 

Hoje (e só porque existe uma escola perto), tive hipótese de distribuir alguns doces, no intervalo grande, porque, pela primeira vez, fui eu que chamei a criançada que passava e lhe dizia ser o dia de pão por Deus.

Acredito que os cemitérios também terão sido menos visitados. As campas serão limpas em outras alturas (mais vulgares), as flores murchas substituídas quando houver tempo para isso.

Os mortos mais sozinhos.

E fiquei triste. Triste por ver tradições a morrerem, triste por perceber que a cultura de um povo empobrece, por decisões de alguns que dizem representá-lo. Triste por todas as crianças que, sem se darem conta, terão menos alegrias, menos  cumplicidade, menos partilhas, menos sorrisos por parte dos adultos. 

Transformámos um dia tão especial num igualzinho à maioria dos restantes. Acizentá-mo-lo.  

Estou mesmo triste!

14 outubro 2013

(Quase) Às Portas da Prisão


Sigo! Não posso ficar!

Dormi? Terei conseguido? Não o suficiente, que sinto as pálpebras fecharem.

Esperem… Estou lembrada de embater no meu filho, algures, por entre névoas.

Estava onde?

Que importa?

             A cabeleira cai-me para o rosto, enfiam-se finos cabelos nos olhos 
e não consigo tirá-los. 

Os meus cabelos estão cheios de electricidade estática.

Estática... Deixem-me rir. 
Estática sinto-me eu, que tenho os pés gelados, o nariz quase a cair e não sei se com estalactites. Os olhos, ao contrário, ardem que nem achas na fogueira, com fumo e tudo.

E é com este aspecto que terei de olhar os “monstros” sedentos de documentação.

Estou empedernida!

Quero um Guronsan, pleaseeeeee…

O café terá deixado de fazer efeito? Já tomei um no leite, mal coloquei o esqueleto fora da cama - tipo zombi.

“- Sai um galão de máquina com leite frio” – diz o empregado , esboçando um sorriso ao ver-me entrar de rompante na pastelaria, quase a estatelar-me ao comprido no final dos três degrauzitos.

“- Tipo bomba” – acrescento eu, a experimentar a voz ainda adormecida e corando de vergonha, com a sonante espalhafatosa e desajeitada entrada.

E foi o que foi.
O chapéu-de-chuva prendeu-se no saco; o saco enredou-se na alça da mochilita; as luvas, com dedos a sobrar e sem tacto, esmurraram o copo do galão:

COM ÊXITO.

E eu a tentar segurar tudo, por entre sons PNI (Perfeitamente Não Identificáveis):

SEM ÊXITO.

E... zás, bem na minha frente, o evasivo copo cai, sob o meu olhar horrorizado, escorrendo o meu rico galão bem por cima das botas de um polícia que, com um colega, ali se encontrava a beber a sua biquita.

ESTOU INOCENTE!!!! JURO!!!

Pensei dizer - com ênfase e tudo. 
Mas não estou!
 Tinha sido minha culpa, mesmo minha e, para cúmulo, sai-me um longo e sibilado 
“- Upsssss…”,
 assim como se em vez de ter sujado as botas engraxadas do senhor agente, estivesse a jogar um bubbles com ele e lhe tivesse dado uma grande “sova” e ainda usasse de sarcasmo. 

“- Upssss…”

Com ele a fixar-me, por detrás das lentes escuras dos óculos (decerto incrédulo), quando deveria olhar as botas e delas não desviar o olhar, de forma a permitir-me a fuga (a sete pés), até entrar espavorida no comboio, já em andamento e com as portas a fechar, enquanto o chui - a gritar e gesticular - corresse ao longo do comboio, mas fora dele, claro.

Com direito a tiros para o ar e tudo.

E o meu comboio que não chega aiaiaiaiaai.

Tenho a certeza que vê em mim algo de estranho. Ao olhar este rosto de ar esgrouviado e macilento de olhos vermelhos e alucinados:

uma possível marginal.

Por isso, até pode puxar do cassetete e dar-me com ele no meio dos olhos e segurar-me pelos cabelos (à tempo da pedra) e arrastar-me até à pildra.

POR OUTRO LADO, vê alguém com saco e mochila, que tem um ar lavado e perfumado, que lhe retira a marginalidade -, ainda que o esgrouviado fique.

Por fim, digna-se pousar a chávena do café enquanto diz:

“- Não tem importância.”

Como possuo uma imaginação fértil, até lhe coloco um leve sorriso nos lábios, mas adivinho-lhe nos olhos faíscas, raios, granadas, bazucas, chaimites, sei lá… até tubarões de bocarra escancarada e, por instantes, nem um dedinho me atrevo a mexer, até que me retiro em câmara lenta, de marcha à ré – que não quero ser morta pelas costas – resistindo à vontade de puxar de guardanapos, me ajoelhar e limpar-lhe as botas, com medo de nelas esbarrar o nariz.

Já no comboio, em desassossego completo, pouso toda a tralha causadora do incidente (afinal não fui eu hihihi), recosto-me na cadeira, estico as pernas e esforço-me para não rir às gargalhadas, que com a minha sorte algum dos viajantes poderá ser do Júlio de Matos e entre este local e a prisão… não sei o que prefiro.

Uma coisa é certa… melhor que a cafeína, só mesmo a polícia para me acordar!


13 outubro 2013

Falta de jeito



P’ra versos não tenho jeito
Não nasci p’ra versejar
A prosa surge-me a eito
É quase como falar

A rima não me sai bem
E não é que pouco tente
Faça-os quem jeito tem
Conquanto diga o que pense

Leio e releio a poesia
Pasmada, cheia d’encanto
Se pudesse eu a faria
Não tenho jeito p’ra tanto

Arte, engenho, inspiração
Uns têm em demasia
Sem fortuna sou então
De a ter eu gostaria

Não somos todos iguais
Desculpo-me eu a preceito
Imagino-os geniais
Faça-os quem tenha jeito

Fico até um pouco triste
Que raio por que não eu?
A pena eu ponho em riste
Nada sai de muito meu

No entanto até é fácil
Pelo menos quando se lê
Métrica?,  é toda táctil
O resto logo se vê

Paciência não me falta
Nada tem a ver com treino
Parece tudo estar em alta
É mesmo questão de jeito

Simples mortal eu serei
Em busca do que me anime
Só alguns podem ser rei
Duma arte tão sublime

Rendo-me, não tenho musas
Talvez nunca as venha a ter
Tenho imagens difusas

Desisto de as escrever!

17 setembro 2013

Emoção



Vestes lágrima sofrível
Pintas dores no coração
Guardar-te é impossível
Largar-te? Ainda não!

Moras dentro de meu peito
Junto ao morro da saudade
Pões-me a alma bem a jeito
A abarrotar de ansiedade

A sufocar sofrimentos
A calar valentes dores
De mãos dadas junto a mim

Largas enormes momentos
Peço-te, não me abandones
Quisera morrer em ti!

14 setembro 2013

Uma Noite



O silêncio da noite, carregado de cheiros, entrava pela janela semi-aberta.

Eram cheiros de penumbra de Verão, em catrapiscares constantes.

Cheiros de liberdade desenfreada, com sabor a maresia e rumores de ondas a rebentarem de felicidade.

Queria mais, muito mais que aquele silêncio em abandono.

Ao longe, a travagem do vento a embater nas folhas das árvores - a lembrar sibilos ocultos -, a impregnar o ar de mistério e a dobrar malmequeres e papoilas.

Era uma noite de encantos vários.

 Uma noite de fadas, de lanternas mágicas e de estrelas a polvilharem o ar de pozinhos de perlimpimpim.

Ao longe, ainda mais ao longe, o piar nocturno de uma ave - incomodada pelo calor – bicava a noite: saboreava-a.

De olhos fechados, era perfeito o seu desenhar.

Mas queria mais, muito mais.

Queria agarrar a noite, não uma qualquer, mas aquela que lhe entrava nessa exacta noite, pela janela semi-aberta.

Uma noite cheia de cheiros imaginários, de sonhos por sonhar, de verdades escondidas, de fictícias realidades.

Era uma noite carregada de pirilampos, de borboletas e joaninhas.

Uma noite feita de longes e pertos,



01 setembro 2013

Just a small moment of me



Vi um filme, porque hoje é domingo, não trabalho. Sentei-me no sofá, pernas estendidas, almoçadeira cheia de leite e água e café e açúcar, em doses ocasionais – sempre certas.  Várias fatias de pão com doce, acompanharam o desenrolar do filme que, já vi em tempos e até tenho na estante da sala.

Grotesco não me lembrar de um filme assim. Deve ser da idade (a avançar mais rapidamente do que alguma vez imaginei), falha-me a memória.



E dei comigo a encolher as pernas, a abraçar a cintura e a chorar, que nem uma desalmada: a não me importar se algum resto de rimmel esborratava as minhas olheiras.

Porra!

Ultimamente está mais refinado o meu sentir.

Ao perceber que a máquina de lavar roupa terminava a sua função, fiz pausa para a estender.
Debruçada nos ferros pintalgados de ferrugem, vi o meu quintal. Corri o olhar em redor e senti que viajo muito, que descubro pequeninas coisas  - e como eu gosto de descobrir pequeninas coisas.

E senti os olhos brilhar de felicidades várias.

Foi exactamente nessa altura que me lembrei de um soneto de Camões sobre o amor e me apeteceu roubar um verso:

“é um andar solitário entre as gentes”.

Porque esse verso define muito de mim. Entra pelo meu sótão e embala-me as memórias, à laia de quem se despede, mas fica sempre.

E eu permito, porque vou doseando a solidão com a vontade de viver e a esperança de um dia o esquecimento ser maior que a própria dor:


incapaz de ultrapassar as minhas pequeninas – mas tantas - felicidades.

31 agosto 2013

Imaginação Lda.



Tenho sempre esperança de imaginar algo. Refiro-me à escrita, que nas outras áreas artísticas está mais que provado: sou um zero à esquerda. Um conto que seja.

Nada!

Fica sempre o caminho das letrinhas baralhado, caótico, anémico, com pequeníssimas ideias a saltitar – mendigas.

Sempre que leio os outros (os imaginativos) fico admirada por não ter sido eu a lembrar-me dos motes. Entre a tristeza, patente na real constatação de que não sou nenhum Colombo - antes, revejo-me em todos os que, só depois daquele ter colocado um ovinho de pé, consideraram fácil e desataram a deitar uffs e ahhs e ohhs, carregados de desprezo – e alguma tristeza (para não dizer dorzita de cotovelo e preocupação crescente de nada vir a ser só meu – que raio, bolas, uf e ah e oh), fica uma frustração preocupante: vá que não deixam nada para eu imaginar?

O caminho desenhado no meu cérebro faz-se em constantes arrepios desnorteados; as palavras caem, qual Outono lexical; sujam-se de tinta; chocam entre si, misturam-se, fazem o pino, o flic flac, esquivam-se, escondem-se, voltam-se de costas, rasgam-se. Eu entro em mim, na tentativa de as arrumar, na esperança de que, na ordem, encontrarei a imaginação.

Nada!

Recorro a truques. Resisto a aceitar o morno da minha condição de simples aprendiz (ainda por cima limitada).

O tempo passa, o cozinhado é escasso.

Parece tão fácil: uma dose de conhecimento, outra de sentimento, um pouco de humor (até pode ser negro), tempo, vontade.

Nada!

Alguém me disse que uma boa prosa deve ter a capacidade de “agarrar o leitor pelos colarinhos e puxá-lo para dentro da escrita”: devo constantemente tropeçar em pessoas que só usam T-shirts (só pode).

E fico a imaginar uma onda - feita de palavrinhas e sinais de pontuação – a enrolar o leitor, a engoli-lo até ao âmago, a levá-lo (sem resistência) até ao fundo da criação de uma ideia e a colocá-lo frente-a-frente com o entendimento (que também é feito de interrogações). E tudo isto sem tédio.

Imagino o leitor – ávido, de ar compenetrado, profundo e calmo – a folhear páginas – totalmente alheado; a avançar,  preocupado com o fim; a levantar, de quando em vez, a cabeça para fixar o olhar num ponto… além; pensativo. O leitor a estabelecer pontos de contacto com a sua vida, como se o autor o conhecesse, falasse dele, escrevesse sobre ele. O leitor a ver-se belo, miserável, corajoso; a embater em todos os tipos de sorte e de destinos; a encaixar-se na história (ao milímetro); a protestar; a levantar de novo a cabeça em busca de soluções: a acreditar em soluções e na mudança. O leitor a fechar o livro: só para não o terminar. A absorver, compulsivamente e com ardor, todas as cores, texturas, cheiros, objectos, fumos, .temperaturas.  A projectar-se para lugares desconhecidos. A sair do dia, a entrar pela noite, a esconder-se, a procurar-se.  A franzir o sobrolho de cada vez que o personagem resvala, a enfonar o peito quando vence, a arquear as costas e descer os ombros sempre que perde (sem escapar a lagrimazita no canto do olho).

Às letrinhas, imagino-as - quais colcheias saltitantes numa pauta de música – marotas, sorridentes, cheias de laçarotes, a pregarem-se partidas; imagino-as a deslizar na neve, ou a apanhar sol (sem esquecer os óculos escuros).

E eu a correr, esbaforida, quase a apanhalá-las – com elas a fugirem, rápidas, como um balão cheio de ar que escapou antes de lhe dar um nó. Eu, a puxar tapetes de signos, a tentar ordená-los, limpá-los e a deitar fora - sem querer - vários, camuflados de desinteresse (maganos).

Sentada no vazio, vazia, desesperada.

E, no entanto, há dias em que tudo cheira ao meu perfume mais querido. Dias em que as rugas não fazem parte das marcas da vida. Dias em que, languidamente, estendo as pernas, plena de sentida juventude. Dias em que sou a maior, a mais importante:
sou visível.

É nesses dias que provo o sucesso: tudo flui, cheio de ritmo (frenético). E sabe bem não ter tropeços, nem gaguejos, nem trapalhices, nem inseguranças.

As letrinhas rendem-se, juntam-se - com ar feliz e bem comportado. A neve das folhas derrete, nascem campos de papoilas sorridentes, o cheiro a maresia entranha-se nos poros, as florestas…

Ainda que tudo passe ao esquecimento - enclausurado entre folhinhas soltas amontoadas numa gaveta, entre bugigangas e jornais amarelecidos, (carcomidos por irritantes bichinhos brilhantes, parecidos com mini-peixes, armados em Fittipaldi) -, ainda assim, vale pelos momentos em que as letrinhas me fizeram companhia, em que pousaram nos meus cabelos e ombros, fizeram-me cócegas na cara, entraram pelos olhos, ouvidos, boca, nariz, me invadiram as veias e se deixaram levar – cheias de oxigénio – até ao cérebro.

Existem mundos infinitos na escrita. Brota a ideia, procuram-se as palavras. Mas, o mais fantástico, sempre que é lida, ganha novas e novas vidas, novas cores, novos perfumes; metamorfoseia-se de sentimentos emboídos de música. E é assim que viajamos (pelo menos eu) pelo mundo afora, inevitavelmente prisioneiros.

A escrita é irmã do sonho e, como diz o poeta:

sempre que um homem sonha o mundo pula e avança, como bola colorida, entre as mãos duma criança.

lara lara lara la, lara lara lara la, lara lara lara lara, lara lara lara la…