Sentimentos transformados em divagações; tentativas de descrever o que percepciono; ginástica no uso da escrita; pretensão de escrever... mais do que dar-me, vou-me ao trabalho!
Pela primeira vez (que me lembre) não é feriado. Neste dia, todos os anos, várias crianças gritam: "Pão por Deus", enquanto, em bandos e por entre risadas ansiosas, tocam as campainhas insistentemente.
Por estar de folga, fui - como é meu hábito - comprar doçarias para a criançada. Coloquei numa taça: chupa-chupas; rebuçados; gomas com formas de dentaduras de vampiros, fantasminhas, máscaras, caveiras...
Hoje, pela primeira vez, desde há muitos anos, na minha taça subsistem imensas guloseimas. Durante o dia, fui espreitando por entre os ferros do portão e apenas vi o imenso vazio de crianças.
Hoje (e só porque existe uma escola perto), tive hipótese de distribuir alguns doces, no intervalo grande, porque, pela primeira vez, fui eu que chamei a criançada que passava e lhe dizia ser o dia de pão por Deus.
Acredito que os cemitérios também terão sido menos visitados. As campas serão limpas em outras alturas (mais vulgares), as flores murchas substituídas quando houver tempo para isso.
Os mortos mais sozinhos.
E fiquei triste. Triste por ver tradições a morrerem, triste por perceber que a cultura de um povo empobrece, por decisões de alguns que dizem representá-lo. Triste por todas as crianças que, sem se darem conta, terão menos alegrias, menos cumplicidade, menos partilhas, menos sorrisos por parte dos adultos.
Transformámos um dia tão especial num igualzinho à maioria dos restantes. Acizentá-mo-lo.
Dormi? Terei conseguido? Não o
suficiente, que sinto as pálpebras fecharem.
Esperem… Estou lembrada de embater no
meu filho, algures, por entre névoas.
Estava onde?
Que importa?
A cabeleira cai-me para o rosto,
enfiam-se finos cabelos nos olhos e não consigo tirá-los. Os meus cabelos estão cheios de
electricidade estática.
Estática... Deixem-me rir. Estática
sinto-me eu, que tenho os pés gelados, o nariz quase a cair e não sei se com
estalactites. Os olhos, ao contrário, ardem que nem achas na fogueira, com fumo
e tudo.
E é com este aspecto
que terei de olhar os “monstros” sedentos de documentação.
Estou empedernida!
Quero um Guronsan,
pleaseeeeee…
O café terá deixado de
fazer efeito? Já tomei um no leite, mal coloquei o esqueleto fora da cama -
tipo zombi.
“- Sai um galão de
máquina com leite frio” – diz o empregado , esboçando um sorriso ao ver-me
entrar de rompante na pastelaria, quase a estatelar-me ao comprido no final dos
três degrauzitos.
“- Tipo bomba” –
acrescento eu, a experimentar a voz ainda adormecida e corando de vergonha, com
a sonante espalhafatosa e desajeitada entrada.
E foi o que foi.
O chapéu-de-chuva
prendeu-se no saco; o saco enredou-se na alça da mochilita; as luvas, com dedos
a sobrar e sem tacto, esmurraram o copo do galão:
COM ÊXITO.
E eu a tentar segurar tudo, por entre sons PNI (Perfeitamente Não Identificáveis):
SEM ÊXITO.
E... zás, bem na minha
frente, o evasivo copo cai, sob o meu olhar horrorizado, escorrendo o meu rico
galão bem por cima das botas de um polícia que, com um colega, ali se
encontrava a beber a sua biquita.
ESTOU INOCENTE!!!!
JURO!!!
Pensei dizer - com ênfase
e tudo. Mas não estou!
Tinha sido minha culpa,
mesmo minha e, para cúmulo, sai-me um longo e sibilado “- Upsssss…”, assim como se em
vez de ter sujado as botas engraxadas do senhor agente, estivesse a jogar um
bubbles com ele e lhe tivesse dado uma grande “sova” e ainda usasse de sarcasmo.
“- Upssss…”
Com ele a fixar-me, por
detrás das lentes escuras dos óculos (decerto incrédulo), quando deveria olhar
as botas e delas não desviar o olhar, de forma a permitir-me a fuga (a sete
pés), até entrar espavorida no comboio, já em andamento e com as portas a
fechar, enquanto o chui - a gritar e gesticular - corresse ao longo do comboio, mas
fora dele, claro.
Com direito a tiros
para o ar e tudo.
E o meu comboio que não
chega aiaiaiaiaai.
Tenho a certeza que vê
em mim algo de estranho. Ao olhar este rosto de ar esgrouviado e macilento de
olhos vermelhos e alucinados:
uma possível marginal.
Por isso, até pode puxar
do cassetete e dar-me com ele no meio dos olhos e segurar-me pelos cabelos (à tempo da pedra) e arrastar-me até à pildra.
POR OUTRO LADO, vê
alguém com saco e mochila, que tem um ar lavado e perfumado, que lhe retira a
marginalidade -, ainda que o esgrouviado fique.
Por fim, digna-se
pousar a chávena do café enquanto diz:
“- Não tem
importância.”
Como possuo uma
imaginação fértil, até lhe coloco um leve sorriso nos lábios, mas adivinho-lhe
nos olhos faíscas, raios, granadas, bazucas, chaimites, sei lá… até tubarões de bocarra escancarada e, por
instantes, nem um dedinho me atrevo a mexer, até que me retiro em câmara lenta,
de marcha à ré – que não quero ser morta pelas costas – resistindo à vontade de
puxar de guardanapos, me ajoelhar e limpar-lhe as botas, com medo de nelas
esbarrar o nariz.
Já no comboio, em
desassossego completo, pouso toda a tralha causadora do incidente (afinal não
fui eu hihihi), recosto-me na cadeira, estico as pernas e esforço-me para não
rir às gargalhadas, que com a minha sorte algum dos viajantes poderá ser do
Júlio de Matos e entre este local e a prisão… não sei o que prefiro.
Uma coisa é certa…
melhor que a cafeína, só mesmo a polícia para me acordar!
O
silêncio da noite, carregado de cheiros, entrava pela janela semi-aberta.
Eram
cheiros de penumbra de Verão, em catrapiscares constantes.
Cheiros
de liberdade desenfreada, com sabor a maresia e rumores de ondas a rebentarem
de felicidade.
Queria
mais, muito mais que aquele silêncio em abandono.
Ao
longe, a travagem do vento a embater nas folhas das árvores - a lembrar sibilos
ocultos -, a impregnar o ar de mistério e a dobrar malmequeres e papoilas.
Era
uma noite de encantos vários.
Uma noite de fadas, de lanternas mágicas e de
estrelas a polvilharem o ar de pozinhos de perlimpimpim.
Ao
longe, ainda mais ao longe, o piar nocturno de uma ave - incomodada pelo calor
– bicava a noite: saboreava-a.
De
olhos fechados, era perfeito o seu desenhar.
Mas queria
mais, muito mais.
Queria
agarrar a noite, não uma qualquer, mas aquela que lhe entrava nessa exacta noite, pela
janela semi-aberta.
Uma
noite cheia de cheiros imaginários, de sonhos por sonhar, de verdades
escondidas, de fictícias realidades.
Era
uma noite carregada de pirilampos, de borboletas e joaninhas.
Vi
um filme, porque hoje é domingo, não trabalho. Sentei-me no sofá, pernas
estendidas, almoçadeira cheia de leite e água e café e açúcar, em doses
ocasionais – sempre certas. Várias
fatias de pão com doce, acompanharam o desenrolar do filme que, já vi em tempos
e até tenho na estante da sala.
Grotesco
não me lembrar de um filme assim. Deve ser da idade (a avançar mais rapidamente
do que alguma vez imaginei), falha-me a memória.
E
dei comigo a encolher as pernas, a abraçar a cintura e a chorar, que nem uma
desalmada: a não me importar se algum resto de rimmel esborratava as minhas
olheiras.
Porra!
Ultimamente
está mais refinado o meu sentir.
Ao
perceber que a máquina de lavar roupa terminava a sua função, fiz pausa para a
estender.
Debruçada
nos ferros pintalgados de ferrugem, vi o meu quintal. Corri o olhar em redor e
senti que viajo muito, que descubro pequeninas coisas - e como eu gosto de descobrir pequeninas
coisas.
E
senti os olhos brilhar de felicidades várias.
Foi
exactamente nessa altura que me lembrei de um soneto de Camões sobre o amor e
me apeteceu roubar um verso:
“é
um andar solitário entre as gentes”.
Porque
esse verso define muito de mim. Entra pelo meu sótão e embala-me as memórias, à
laia de quem se despede, mas fica sempre.
E eu
permito, porque vou doseando a solidão com a vontade de viver e a esperança de
um dia o esquecimento ser maior que a própria dor:
incapaz
de ultrapassar as minhas pequeninas – mas tantas - felicidades.
Tenho
sempre esperança de imaginar algo. Refiro-me à escrita, que nas outras áreas
artísticas está mais que provado: sou um zero à esquerda. Um conto que seja.
Nada!
Fica
sempre o caminho das letrinhas baralhado, caótico, anémico, com pequeníssimas
ideias a saltitar – mendigas.
Sempre
que leio os outros (os imaginativos) fico admirada por não ter sido eu a
lembrar-me dos motes. Entre a tristeza, patente na real constatação de que não
sou nenhum Colombo - antes, revejo-me em todos os que, só depois daquele ter
colocado um ovinho de pé, consideraram fácil e desataram a deitar uffs e ahhs e
ohhs, carregados de desprezo – e alguma tristeza (para não dizer dorzita de
cotovelo e preocupação crescente de nada vir a ser só meu – que raio, bolas, uf
e ah e oh), fica uma frustração preocupante: vá que não deixam nada para eu
imaginar?
O
caminho desenhado no meu cérebro faz-se em constantes arrepios desnorteados; as
palavras caem, qual Outono lexical; sujam-se de tinta; chocam entre si,
misturam-se, fazem o pino, o flic flac, esquivam-se, escondem-se, voltam-se de
costas, rasgam-se. Eu entro em mim, na tentativa de as arrumar, na esperança de
que, na ordem, encontrarei a imaginação.
Nada!
Recorro
a truques. Resisto a aceitar o morno da minha condição de simples aprendiz
(ainda por cima limitada).
O
tempo passa, o cozinhado é escasso.
Parece
tão fácil: uma dose de conhecimento, outra de sentimento, um pouco de humor
(até pode ser negro), tempo, vontade.
Nada!
Alguém
me disse que uma boa prosa deve ter a capacidade de “agarrar o leitor pelos
colarinhos e puxá-lo para dentro da escrita”: devo constantemente tropeçar em
pessoas que só usam T-shirts (só pode).
E
fico a imaginar uma onda - feita de palavrinhas e sinais de pontuação – a
enrolar o leitor, a engoli-lo até ao âmago, a levá-lo (sem resistência) até ao
fundo da criação de uma ideia e a colocá-lo frente-a-frente com o entendimento
(que também é feito de interrogações). E tudo isto sem tédio.
Imagino
o leitor – ávido, de ar compenetrado, profundo e calmo – a folhear páginas –
totalmente alheado; a avançar, preocupado com o fim; a levantar, de quando em
vez, a cabeça para fixar o olhar num ponto… além; pensativo. O leitor a
estabelecer pontos de contacto com a sua vida, como se o autor o conhecesse, falasse
dele, escrevesse sobre ele. O leitor a ver-se belo, miserável, corajoso; a
embater em todos os tipos de sorte e de destinos; a encaixar-se na história (ao
milímetro); a protestar; a levantar de novo a cabeça em busca de soluções: a
acreditar em soluções e na mudança. O leitor a fechar o livro: só para não o
terminar. A absorver, compulsivamente e com ardor, todas as cores, texturas,
cheiros, objectos, fumos, .temperaturas.
A projectar-se para lugares desconhecidos. A sair do dia, a entrar pela
noite, a esconder-se, a procurar-se. A
franzir o sobrolho de cada vez que o personagem resvala, a enfonar o peito quando
vence, a arquear as costas e descer os ombros sempre que perde (sem escapar a
lagrimazita no canto do olho).
Às letrinhas,
imagino-as - quais colcheias saltitantes numa pauta de música – marotas,
sorridentes, cheias de laçarotes, a pregarem-se partidas; imagino-as a deslizar
na neve, ou a apanhar sol (sem esquecer os óculos escuros).
E eu
a correr, esbaforida, quase a apanhalá-las – com elas a fugirem, rápidas, como
um balão cheio de ar que escapou antes de lhe dar um nó. Eu, a puxar tapetes de
signos, a tentar ordená-los, limpá-los e a deitar fora - sem querer - vários,
camuflados de desinteresse (maganos).
Sentada
no vazio, vazia, desesperada.
E,
no entanto, há dias em que tudo cheira ao meu perfume mais querido. Dias em que
as rugas não fazem parte das marcas da vida. Dias em que, languidamente,
estendo as pernas, plena de sentida juventude. Dias em que sou a maior, a mais
importante:
sou
visível.
É
nesses dias que provo o sucesso: tudo flui, cheio de ritmo (frenético). E sabe
bem não ter tropeços, nem gaguejos, nem trapalhices, nem inseguranças.
As
letrinhas rendem-se, juntam-se - com ar feliz e bem comportado. A neve das
folhas derrete, nascem campos de papoilas sorridentes, o cheiro a maresia
entranha-se nos poros, as florestas…
Ainda
que tudo passe ao esquecimento - enclausurado entre folhinhas soltas amontoadas
numa gaveta, entre bugigangas e jornais amarelecidos, (carcomidos por irritantes
bichinhos brilhantes, parecidos com mini-peixes, armados em Fittipaldi) -,
ainda assim, vale pelos momentos em que as letrinhas me fizeram companhia, em
que pousaram nos meus cabelos e ombros, fizeram-me cócegas na cara, entraram
pelos olhos, ouvidos, boca, nariz, me invadiram as veias e se deixaram levar –
cheias de oxigénio – até ao cérebro.
Existem
mundos infinitos na escrita. Brota a ideia, procuram-se as palavras. Mas, o mais
fantástico, sempre que é lida, ganha novas e novas vidas, novas cores, novos
perfumes; metamorfoseia-se de sentimentos emboídos de música. E é assim que
viajamos (pelo menos eu) pelo mundo afora, inevitavelmente prisioneiros.
A
escrita é irmã do sonho e, como diz o poeta:
sempre
que um homem sonha o mundo pula e avança, como bola colorida, entre as mãos
duma criança.