Páginas

31 agosto 2013

Imaginação Lda.



Tenho sempre esperança de imaginar algo. Refiro-me à escrita, que nas outras áreas artísticas está mais que provado: sou um zero à esquerda. Um conto que seja.

Nada!

Fica sempre o caminho das letrinhas baralhado, caótico, anémico, com pequeníssimas ideias a saltitar – mendigas.

Sempre que leio os outros (os imaginativos) fico admirada por não ter sido eu a lembrar-me dos motes. Entre a tristeza, patente na real constatação de que não sou nenhum Colombo - antes, revejo-me em todos os que, só depois daquele ter colocado um ovinho de pé, consideraram fácil e desataram a deitar uffs e ahhs e ohhs, carregados de desprezo – e alguma tristeza (para não dizer dorzita de cotovelo e preocupação crescente de nada vir a ser só meu – que raio, bolas, uf e ah e oh), fica uma frustração preocupante: vá que não deixam nada para eu imaginar?

O caminho desenhado no meu cérebro faz-se em constantes arrepios desnorteados; as palavras caem, qual Outono lexical; sujam-se de tinta; chocam entre si, misturam-se, fazem o pino, o flic flac, esquivam-se, escondem-se, voltam-se de costas, rasgam-se. Eu entro em mim, na tentativa de as arrumar, na esperança de que, na ordem, encontrarei a imaginação.

Nada!

Recorro a truques. Resisto a aceitar o morno da minha condição de simples aprendiz (ainda por cima limitada).

O tempo passa, o cozinhado é escasso.

Parece tão fácil: uma dose de conhecimento, outra de sentimento, um pouco de humor (até pode ser negro), tempo, vontade.

Nada!

Alguém me disse que uma boa prosa deve ter a capacidade de “agarrar o leitor pelos colarinhos e puxá-lo para dentro da escrita”: devo constantemente tropeçar em pessoas que só usam T-shirts (só pode).

E fico a imaginar uma onda - feita de palavrinhas e sinais de pontuação – a enrolar o leitor, a engoli-lo até ao âmago, a levá-lo (sem resistência) até ao fundo da criação de uma ideia e a colocá-lo frente-a-frente com o entendimento (que também é feito de interrogações). E tudo isto sem tédio.

Imagino o leitor – ávido, de ar compenetrado, profundo e calmo – a folhear páginas – totalmente alheado; a avançar,  preocupado com o fim; a levantar, de quando em vez, a cabeça para fixar o olhar num ponto… além; pensativo. O leitor a estabelecer pontos de contacto com a sua vida, como se o autor o conhecesse, falasse dele, escrevesse sobre ele. O leitor a ver-se belo, miserável, corajoso; a embater em todos os tipos de sorte e de destinos; a encaixar-se na história (ao milímetro); a protestar; a levantar de novo a cabeça em busca de soluções: a acreditar em soluções e na mudança. O leitor a fechar o livro: só para não o terminar. A absorver, compulsivamente e com ardor, todas as cores, texturas, cheiros, objectos, fumos, .temperaturas.  A projectar-se para lugares desconhecidos. A sair do dia, a entrar pela noite, a esconder-se, a procurar-se.  A franzir o sobrolho de cada vez que o personagem resvala, a enfonar o peito quando vence, a arquear as costas e descer os ombros sempre que perde (sem escapar a lagrimazita no canto do olho).

Às letrinhas, imagino-as - quais colcheias saltitantes numa pauta de música – marotas, sorridentes, cheias de laçarotes, a pregarem-se partidas; imagino-as a deslizar na neve, ou a apanhar sol (sem esquecer os óculos escuros).

E eu a correr, esbaforida, quase a apanhalá-las – com elas a fugirem, rápidas, como um balão cheio de ar que escapou antes de lhe dar um nó. Eu, a puxar tapetes de signos, a tentar ordená-los, limpá-los e a deitar fora - sem querer - vários, camuflados de desinteresse (maganos).

Sentada no vazio, vazia, desesperada.

E, no entanto, há dias em que tudo cheira ao meu perfume mais querido. Dias em que as rugas não fazem parte das marcas da vida. Dias em que, languidamente, estendo as pernas, plena de sentida juventude. Dias em que sou a maior, a mais importante:
sou visível.

É nesses dias que provo o sucesso: tudo flui, cheio de ritmo (frenético). E sabe bem não ter tropeços, nem gaguejos, nem trapalhices, nem inseguranças.

As letrinhas rendem-se, juntam-se - com ar feliz e bem comportado. A neve das folhas derrete, nascem campos de papoilas sorridentes, o cheiro a maresia entranha-se nos poros, as florestas…

Ainda que tudo passe ao esquecimento - enclausurado entre folhinhas soltas amontoadas numa gaveta, entre bugigangas e jornais amarelecidos, (carcomidos por irritantes bichinhos brilhantes, parecidos com mini-peixes, armados em Fittipaldi) -, ainda assim, vale pelos momentos em que as letrinhas me fizeram companhia, em que pousaram nos meus cabelos e ombros, fizeram-me cócegas na cara, entraram pelos olhos, ouvidos, boca, nariz, me invadiram as veias e se deixaram levar – cheias de oxigénio – até ao cérebro.

Existem mundos infinitos na escrita. Brota a ideia, procuram-se as palavras. Mas, o mais fantástico, sempre que é lida, ganha novas e novas vidas, novas cores, novos perfumes; metamorfoseia-se de sentimentos emboídos de música. E é assim que viajamos (pelo menos eu) pelo mundo afora, inevitavelmente prisioneiros.

A escrita é irmã do sonho e, como diz o poeta:

sempre que um homem sonha o mundo pula e avança, como bola colorida, entre as mãos duma criança.

lara lara lara la, lara lara lara la, lara lara lara lara, lara lara lara la…