Há quem defenda que a morte deve
ser encarada como um patamar final da vida, inevitável, sem dúvida, mas normal.
Tudo muito bonito, mas eu não lido bem com esse patamar sórdido, negro e de
onde não se sai para mais lado algum (pelo menos assim o creio). Já não
pensando no meu patamar, aflige-me ver esse final em seres por quem nutro amor,
simpatia, ou admiração.
Mário Soares partiu. Viveu várias
vidas, obstinado, crente no que sentiu verdadeiro, corajoso. Para mim foi uma
das figuras que mais marcaram a minha história de vida e, decididamente, das
mais carismáticas. Admirava-o enquanto ser humano e quase invejava o seu
espírito livre, decidido e arrojado. A sua inteligência parecia-me palpável e simples.
Algumas vezes tive dúvidas quanto ao seu altruísmo (talvez pela facilidade com
que se impacientava), mas considerei sempre que, na minha balança (e sei lá eu
explicar como a ponho a funcionar e quais os pesos que nela coloco), o Mário
Soares pendia sempre para o melhor e para o mais positivo e que por isso eu lhe
estava grata. Vi o seu aparecimento - neste país a querer largar o cinzentismo
– com admiração, mas meus olhos eram ainda novos para avaliar a sua importância
por entre tantos outros rostos que com ele emergiram. Claro que também fui uma
voz discordante de alguma posições suas.
Os anos foram passando. A vida
deslapidou seres importantes até que chegou a vez de Maria Barroso. Nessa
altura, dado o tempo que passaram juntos (cerca de 70 anos), lembro-me de ter
pensado que o Mário Soares não duraria muito mais, pela tristeza e solidão que
passaria a sentir, sem o amor de sua vida. Hoje considero que, tendo ele a
idade que tinha aquando da morte de sua esposa, dificilmente erraria o meu
pensamento.
Viveu o que lhe foi possível e se
a sua idade já não lhe permitia projectar a voz (de tom aberto, autoritário e
destemido) para afastar algum elemento indesejado, ou abrir/alertar mentes; se a
idade, lhe retirou as forças para caminhar por entre vales e serras, ou pura e
simplesmente o impossibilitou de se agarrar a uma carruagem de comboio ou
projectar o corpo para fora da janela de um carro, enquanto - de sorriso aberto
e, mais uma vez, destemido - abria os dedos indicador e médio em V de vitória,
ou o polegar em fixe; se a idade já não lhe permitia intervir impetuosamente
contra males abomináveis (onde a desumanização se enraíza quase a tornar-se
normal nos dias que passam) de forma a deixar claro que o medo e o silêncio
apenas promovem a enormidade do que de mais errado possa existir; essa mesma
idade não apagou a curiosidade, nem o discernimento político, social e cultural
que só um grande Homem pode conter e que para mim estava bem visível no seu
olhar.
Fiquei triste pela sua morte,
ainda estou triste. Mas sei que a minha maior tristeza reside na certeza de que
poucos serão tão destemidos quanto Mário Soares e, sobretudo, poucos entregarão
a sua vida com lutas tão dignas de forma tão convicta, sonhadora e corajosa.