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Viajar diariamente em transportes tão lotados como o comboio, metro ou autocarro, cria no ser humano sensações incríveis como raiva surda, ternura, espanto, terror, calma, repugnância ou indignação.
Quando se é obrigado a ficar em filas intermináveis, faça chuva ou faça Sol, se espera minutos que nos parecem horas e se leva com o fumo do cigarro dos utentes da frente; quando os transportes teimam em não cumprir o horário e sabemos que o ar a respirar dentro dele será invadido por mais umas boas dezenas largas de pessoas (que nem sempre cumprem as regras da boa higiene); quando esse ar é constantemente agredido por espirros, tosses, mau hálito; quando somos pisados sem um pedido de desculpa; quando vemos o nosso lugar preferido ser ocupado por alguém que, indelicadamente e por meio de fintas, passa à nossa frente; quando percebemos que não vale a pena protestar, porque nos olham de alto a baixo e, na melhor das hipóteses, nos mandam ir de táxi; quando damos passagem aos que saem primeiro que nós, encolhendo-nos contra os ferros dos assentos e já não conseguimos regressar à posição inicial, mantendo o corpo em torsão até os rins gritarem, porque alguém que não vai sair avançou e estacou precisamente nesse nosso espacinho; quando.... quando.... quando... é inevitável sentirmos algo.
Sem falar daqueles que, despudorados, se encostam demasiado a nós, fazendo-nos encolher ao máximo e levantar os cotovelos bem para trás, na ilusão de criarmos alguma barreira; ou dos que resolvem levantar o braço para se agarrar às argolas penduradas no tecto, agoniando-nos com o cheiro nauseabundo que exalam dos sovacos; ou dos que, deconhecedores da escova de dentes e do fio dental, teimam em tirar parte do pequeno almoço dos dentes, chupando-os ruidosamente, ou, com aquela enorme unha do dedo mindinho, retiram os restos, escancarando a bocarra por onde introduzem o dedo, diante o nosso olhar, primeiro distraído, depois crispado de nojo.
Acredito que estas viagens são um excelente meio de conhecer a natureza humana. Um olhar mais atento poderá enriquecer o imaginário de qualquer um. Sendo o Homem um animal de hábitos, elege uma fila e a ela regressará dia após dia.
Ao fim de algum tempo julgamos estar adaptados e criamos defesas incríveis. Alguns lêem a “Bola” ou o “Record” e trocam impressões, isentas de tendenciosismo, sobre os jogadores, árbitros e técnicas de jogo. Há quem opte por leituras “mais profundas”, como a “Maria”, o “O Crime”, ou o “Sexologia”. Certas senhoras preferem as revistas chiques, onde podem pôr em dia os “reality shows”, ou olhar para as elegantes figuras do mais alto nível social, onde sonham pertencer um dia. Alguns lêem um livrinho e, para que ninguém saiba o título, forram-no com uma folha de papel pardo. Os mais descarados mostram o calhamaço, geralmente best seller... é assim mesmo, não é para todos. Há ainda os que, de pé, lêem os livros, jornais e revistas dos outros, para não terem de olhar para o cocuruto de quem vai sentado. Que diabo, ninguém tem a culpa de os vidros dos transportes serem espelhados, tem de se olhar para algum lado.
Quem consegue um lugar junto de uma janela esquece qualquer tipo de leitura, liga o piloto automático e delicia-se a dormir. Não há barulho que incomode, até embala. Tornou-se vulgar o uso de headphones que permite ao amante da música levar o seu leitor de CDs. Já ninguém protesta do ruído que sai pelos meandros criados entre os auriculares de som e as orelhas. É até engraçado ver o abanar da carola, o bater dos pés, o ritmo bem marcado dos dedos nas pastas ou pernas, demonstra energia, vontade de viver... alegria.
Não raro, principalmente no comboio e metro, o aparecimento dos pedintes. Eles são cegos, doentes do coração, sero-positivos, expatriados (com filhos ou não ao colo), guitarristas ou acordeonistas (com ou sem cão ao ombro, segurando o cestinho das esmolas), crianças... toda uma série de gente que se cruza. Os não pedintes desviam os olhares e raramente dão seja o que for, mas eles não desistem, caramba, é o seu ganha pão. Cada um faz o melhor que sabe e pode.
Eis-me chegada ao intento da minha escrita. Sendo eu, por falta de opção, uma assídua frequentadora dos transportes públicos, sou também das que desvia os olhares de toda aquela gente que me incomoda com o seu pedir. Desvio o olhar, desvio o corpo, desvio tudo o que tiver nas mãos. Não tenho o hábito de dar esmola, essa é que é essa. Sinto-me irritada quando instintivamente, de mão alçada, levanto os olhos do meu livro (sim, que eu também leio nos transportes) e me apercebo que acabei de aceitar mais um daqueles papelinhos com uma história triste de vida. Fico sem jeito e quando tento devolver o papelinho à proveniência, já o desgraçado está em outro sítio e me obriga a esperar o seu regresso. Esta táctica obriga-nos a pensar, mesmo que não queiramos e lá se vai o enredo da nossa leitura, que diabo.
De volta, não vendo moedinha alguma, olham-me com aquele ar reprovador e sofrido, como se fôsse insensível à sua dor e causadora da sua desgraça, o que me cria uma sensação de mau-estar. Ah... mas eu resisto e não dou!
Um dia destes, de regresso a casa, sentadinha junto a uma janela, ouvia música (sim, que também oiço música nos transportes) e lia ao mesmo tempo, só desviando os olhos do livro quando a música me fazia perder um pouco o fio da leitura. Vinha perdida em pensamentos vários, em sonhos e pesadelos, quando uma criança, baixa, moreníssima, de cabelo escuro, quase rapado, de pequenino busso sob o lábio superior se aproximou de mim. Vi que era mais uma daquelas crianças perdidas no mundo da caridade. Olhou-me com os seus olhos castanhos escuros e nada disse. Ao meu redor os bancos estavam vazios e ela depositou sob o que se encontrava mais próximo de mim o dito papel do choradinho. Não liguei. Baixei os olhos e retomei a leitura. De vez em quando olhava o papelito, era uma mancha branca que se destacava da cor verde dos bancos, mais nada, nem me dignei ler.
Minutos depois a criança apareceu e levantou o papel, sem me olhar. Segui a sua pequena figura. De cabeça baixa reunia os seus papéis num montinho. As suas costas curvadas estavam tapadas com um “pull over” coçado cinzento, de malhas saídas e pequenos buracos. Dirigiu-se à porta que divide as carruagens movendo os lábios, com ar zangado. Curiosa, desliguei o meu leitor. O miúdo mudou de ideias, largou as portas já entreabertas e sentou-se num banco perto do meu. Vi-o sacudir as calças azuis, sujas de lama, baixar-se até tocar os ténis de cor indecifrável e puxar os atacadores curtos, partidos, numa tentativa de os atacar. Endireitou-se e com a mão direita arregaçou a manga do braço esquerdo, pondo à vista um relógio no seu pulso magro. Parecia um daqueles relógios saídos nas bolas de plástico que certos cafés “oferecem” após a inserção de uma moeda de um euro. Levantou o braço esquerdo à altura dos olhos e perguntou-me as horas. Tirei o telemóvel da bolsa e disse-lhe serem 3h e 15m da tarde. Sem agradecer, olhou o seu relógio, baixou e levantou várias vezes a cabecita e perguntou-me os segundos. Disse-lhe que não sabia. Fez um pequeno ahhhh desolado e encostou-se, de olhar vago, pernas a balouçar, lábios a abrir e fechar sem que eu entendesse o que dizia.
Duas paragens depois, levantou-se, olhou de novo para mim enquanto abria as portas e me dizia “Ciao”. Acenei-lhe com a mão que tinha livre, creio ter-lhe feito um pequeno sorriso. Desapareceu, deixando-me destroçada, com vontade de chorar.
Que raio de mundo este em que vivemos em anomia completa, numa sociedade providência com tendência a desaparecer. Fiquei triste pela sorte daquele miúdo, pela sorte de todos os miúdos que são obrigados a pedir para sustentar a família. Sim, que este decerto não era drogado. Lembrei-me dos “Capitães da Areia” de Jorge Amado, do mundo incrível e adulto que uma criança, sem direito a ser criança, é obrigada a viver. Pensei na possibilidade enorme de miúdos como aquele crescerem sem a noção de dignidade e na quase impossibilidade de se desmarginalizarem. Pensei nos desvios que a sorte lhes concedeu, nas alternativas quase nulas de sucesso. Pensei no frio, no mau cheiro, nos piolhos, na linguagem ordinária, na ausência de sonhos, na fome, na miséria, nos maus tratos, na tristeza, no morrer sem ter direito à vida.
Hoje, em outro horário, o mesmo miúdo cruzou-se comigo no comboio. Vi-o com os seus papelitos na mão, distribuindo-os pelos meus vizinhos. A mesma roupa, os mesmos ténis. Reparou em mim quando já desviava o seu olhar. Rapidamente voltou a cara para mim e abriu um largo sorriso enquanto dizia olá e acenava com a mão. Sorri e acenei-lhe também. Sentou-se ao meu lado, calado, sem me dar papel algum. Fiz-lhe uma festa no ombro enquanto lhe perguntava as horas. Orgulhosamente, destapou o seu maravilhoso relógio e respondeu-me. As pernas balançavam batendo com força no lugar onde se sentara. Sorri-lhe. Tirei o telemóvel e comprovei rindo que estava igual ao meu. Mostrei-lhe. Ele levantou o seu dedinho sujo à altura do nariz e disse-me que o dele era melhor, porque tinha segundos. Tive vontade de o abraçar, mas ogo ele se levantou e disse-me “ciao”. Recolheu os papéis que distribuíra e, quando passou por mim, não resisti e dei-lhe uma moeda. De olhinhos brilhantes e meio fechados, sorriu e disse-me “Até amanhã”.