As fotos da minha vida desfilam diante meus olhos fechados, pacatas, repletas de legendas e personagens misturadas - como se o facto de me conhecerem lhes permitisse conhecerem-se?!
A sensação de abandono apanha-me que nem um murro certeiro no estômago. Vejo-me a sorrir, consolo de mim mesma e gosto. Gosto da sensação de me sentir, gosto da emoção de me reconhecer, de ainda me não ter perdido.
Penso nos mundos que teria de contar, mundos que conheci e vivi. Percebo que não existem palavras suficientes e que os pensamentos podem não passar de memórias expurgadas, viciadas pelas várias percepções dos momentos em que existiram, em que ainda não eram memórias.
Dou conta das ténues linhas que ligam os meus mundos, das várias pontes que atravessei em visitas não pensadas. Relembro as alegrias e as tristezas e em ambas reconheço a inocência.
No desfile ininterrupto uma frase surge: “I´m special... so special...” e projecto a minha imagem em dança. As lágrimas saem. Como raio conseguem elas sair tão docemente por debaixo das pálpebras cerradas? Sinto-as quentinhas, a engrossar forças para percorrer o trajecto que as levam ao meu sorriso, onde por momentos ficam quietas, para logo de seguida se perderem.
Fulano de tal, nasceu em... filho de pais miseráveis, teve uma infância infeliz. Aos vinte e tal anos... Páro o pensamento. Então uma infância conta-se assim?, num estalar de dedos?... puf,... teve uma infância infeliz... e já está! Pensem o que quiserem, que os pais lhe batiam mal ele se levantava da cama, que era doente crónico de várias mazelas, que passava fome e era vítima da conjuntura socio-política da época... que fez uma adolescência isolado da realidade, como se de mais uma doença se tratasse, desta vez uma doença proibída, que o envergonhava, até perceber que já não era mais criança. Assim, sem mais nem menos, num outro puf. Para onde foram os sofrimentos? Para onde foram os sonhos? Para onde foram todas as palavras usadas por ele? E as perguntas? Sim, para onde foram as perguntas? E o ar que ele respirou, onde está? E a luminosidade do olhar? As suas lágrimas?...
Tento perceber o que quero transmitir a mim mesma. Por que carga de água é que os pensamentos se enovelam em turbilhão e parecem não ter nexo? Imagino que se alguém dissecasse os meus pensamentos me diagnosticaria uma loucura qualquer.
Vou estender o meu exterior na corda de secar.
Sentimentos transformados em divagações; tentativas de descrever o que percepciono; ginástica no uso da escrita; pretensão de escrever... mais do que dar-me, vou-me ao trabalho!
20 maio 2006
De Tolos e Loucos...
Foto de: Pedro Machado
19 maio 2006
Socorro... Fui Assaltada
Abril é um mês terrível, repleto de pagamentos e por isso indesejável. Todas as entidades parecem associar-se nesse mês e é um ver se te avias para pagar à EDP, ao SMAS, à Companhia de Gaz, à Telecom, à “Internet”, a Contribuição Autárquica, a mensalidade da casa, os vários seguros da casa, de vida, do carro... e, por falar do carro, a famosa ida à inspecção de veículos, que envolve sempre uma revisão onde o desgraçado acusa sempre danos e os necessários e inadiáveis arranjos para que passe na inspecção.
Desta vez, mal recomposta da substituição da placa de distribuição ou transmissão ou lá o que seja, que sem avisos partiu e fazia o automóvel andar aos solavancos, o estúpido arranja uma mazela que me obriga a comprar um disco de embraiagem novo e mais foles de não-sei-o-quê, uma mudança de óleo e substituição do filtro a ele relacionado e ainda o filtro de ar, para que respire melhor e... a famosa e caríssima mão-de-obra... Como se não bastasse de desgraças, a agravar a situação, fico sem o pópó, porque eles querem-no na oficina, assim, sem dó nem piedade... e eu tenho de andar a pé.
Ok, pensamentos positivos, sempre queimo umas calorias a mais, faz muito bem à saúde, ajuda a manter a linha e sempre se poupa no combustível, etc., etc., etc. O trajecto não é longo, cerca de um km de casa à estação de combóios.... aguento firme.
A coisa até corre bem, o tempo ajuda com os seus dias ensolarados, nada de mais.
Um desses dias, já de regresso, por volta das 16 horas, sigo o trilho em direcção ao lar doce lar. Ligo ao namorado, que prontamenteme me acompanha nesses 15 minutinhos de caminhada. Alegre, palreio e escuto-o. Perto da entrada do meu bairro despeço-me, não quero “tirar-lhe” mais tempo e desligo.
O dedo encontra-se ainda a pressionar o botão do auricolar, quando esbarro contra uma faca que, por acaso, se encontra na mão de um indivíduo, ali bem na minha frente, travando o meu feliz andamento. Caído do Céu? Magia? Estarei a alucinar? Olho-o e reconheço alguém que por alguns instantes caminhara paralelo a mim, bem do outro lado da estrada.
Estes velozes pensamentos são acompanhados por um grito estranho, misto de desespero e susto. Um grito mais parecido com o uivo de um animal acossado. Olho rápido à minha volta e... ninguém, a não ser eu, o indivíduo e aquela faca bem encostada à minha barriga que teimo em encolher. O grito havia saído da minha garganta. Então eu tenho uma reacção daquelas? E um grito assim tão esganiçado? Espanto sobre espanto.
- Passa para cá essa merda!
Indelicado o sujeito. Estúpido de todo. Com que direito me trata por tu?, assim como se fosse um amigo de longa data... francamente. E não saberá ele que me assustou? Tive vontade de o esbofetear e dizer-lhe “- Nunca mais me faça isto OUVIUUU???? Poderia ter tido um ataque de coração, ora faça-me o favor.... que raio, que parvalhão me saiu. Então não sabe que essa faca pode magoar alguém??? Que coisa....” A seguir, tirar-lhe a faca, dar-lhe um golpe de judo ou karate, morder-lhe a mão e partir a faca aos pedacitos. Tudo isso enquanto lhe pregava o maior ralhete e o ameaçava de lhe dar mais se o visse de novo no meu caminho. “- Xô, andor, vá de retro, evapore-se, suma-se tão rápido quanto apareceu na minha frente....”. Nada... Dir-se-ia que o grito inconsciente e irreconhecível - que o meu outro eu mandou para fora de mim – limpou o canal do som, colocou barreiras, fez delete, sei lá. Só a minha barriguinha teimou em se manifestar obrigando-me a respirar pouco, com medo de a expandir, o que poderia dar mau resultado com o bico daquela arma branca que sem ser branca era assustadora como o raio. Atrofiei completamente.
Olho o mágico, o maratonista, o caído do Céu – que eu não o vi atravessar a estrada não senhor . Era um indivíduo de cerca de 20 anitos, tez muito escura, assim mais para o negro, cabelo curtinho, bem apresentado, camisola vermelha e calça de ganga. Parecia até lavadinho. Ora bolas!?!?!?!! Estava ele tão bem do outro lado da estrada, local onde a faca não incomodava nadinha e onde poderia ter continuado... que chatice.
E cadê os heróis??? Hã??? Sim, aqueles que também aparecem de surpresa, torcem o pulso enquanto dão um par de socos ao vilão, assim, sem sequer despentearem um cabelito que seja? Nem vê-los quando são precisos...
Segundos depois do ataque e do meu grito, já lhe dou o telemóvel, o meu companheiro de tantas horas. Faço questão de lhe passar o meu blusão de cabedal que transporto no braço esquerdo, ao mesmo tempo que torço delicadamente o tronco – por causa da faca que nem ouso tornar a olhar – e retiro a mala que transporto como mochila. Dizem que quando a esmola é grande o pobre desconfia e ele deveria ser muito pobresinho porque só quis o telemóvel. Incrédula vejo-o arrancar à bruta o auricolar e com desprezo mandá-lo ao chão.
- Não quero esta porcaria!
Então o anormal não saberá que as ondas electromagnéticas fazem mal ao nosso rico cérebro??? E não consegue imaginar quantos auricolares eu já adquiri para minimizar esses nefastos efeitos? Manda-me assim, sem cuidado algum, o meu querido auricolar para o chão? Parvalhão de todo o estronço. Quer fazer mal à sua saúde, que faça, mas seja mais delicado com as coisas dos outros, ora essa...
Vejo-o afastar-se a correr, em sentido contrário ao que eu tomava e dou comigo já virada na sua direcção, de braço esticado com a mala e o casaco pendurados. Terá levado a faca consigo ou ela ainda ali está, encostadinha a mim???
Breves milésimos de segundo para perceber a impossibilidade, breves milésimos de segundos para me baixar a apanhar o que restava do telemóvel – o auricolar - breves milésimos de segundo para o ver olhar para trás, na minha direcção e perceber a sua hesitação. Ter-se-à arrependido?? A voz do meu outro eu a surgir de novo: “- Não posso tirar uns numerozitos?” tipo último desejo antes de subir ao cadafalso, de forma suplicante... “- Vá lá... só uns numerozitos”. Calo a voz que não reconheço minha enquanto o vejo mudar de semblante, incrédulo. Bem feita... pelo menos surpreendi-o. Ora essa... mereceu. Logo retoma a correria, já sem olhar.
Caio em mim, olho bem a blusa justa ao corpo e não encontro furo algum, nem mancha de sangue... aperto o blusão e a mala contra o estômago, e retomo a minha marcha.
Ahhhhh preciso dizer que o meu filho e dois amigos estavam em casa e, depois de tomarem conhecimento do sucedido, saltaram do sofá (o que nem sempre é fácil) e numa correria desenfreada – indo o meu filho com um taco de baseball – palmilharam com persistência as ruelas fora do bairro. Encontraram-no cerca de cinco telefonemas para Cabo Verde depois. Sacaram-lhe o telemóvel e ainda teve direito a uma basebolada, tendo-se esgueirado com gritos que não terá identificado como seus. Tenho disso experiência e certezinha absoluta.
Afinal os meus heróis tardam, mas não falham.
Desta vez, mal recomposta da substituição da placa de distribuição ou transmissão ou lá o que seja, que sem avisos partiu e fazia o automóvel andar aos solavancos, o estúpido arranja uma mazela que me obriga a comprar um disco de embraiagem novo e mais foles de não-sei-o-quê, uma mudança de óleo e substituição do filtro a ele relacionado e ainda o filtro de ar, para que respire melhor e... a famosa e caríssima mão-de-obra... Como se não bastasse de desgraças, a agravar a situação, fico sem o pópó, porque eles querem-no na oficina, assim, sem dó nem piedade... e eu tenho de andar a pé.
Ok, pensamentos positivos, sempre queimo umas calorias a mais, faz muito bem à saúde, ajuda a manter a linha e sempre se poupa no combustível, etc., etc., etc. O trajecto não é longo, cerca de um km de casa à estação de combóios.... aguento firme.
A coisa até corre bem, o tempo ajuda com os seus dias ensolarados, nada de mais.
Um desses dias, já de regresso, por volta das 16 horas, sigo o trilho em direcção ao lar doce lar. Ligo ao namorado, que prontamenteme me acompanha nesses 15 minutinhos de caminhada. Alegre, palreio e escuto-o. Perto da entrada do meu bairro despeço-me, não quero “tirar-lhe” mais tempo e desligo.
O dedo encontra-se ainda a pressionar o botão do auricolar, quando esbarro contra uma faca que, por acaso, se encontra na mão de um indivíduo, ali bem na minha frente, travando o meu feliz andamento. Caído do Céu? Magia? Estarei a alucinar? Olho-o e reconheço alguém que por alguns instantes caminhara paralelo a mim, bem do outro lado da estrada.
Estes velozes pensamentos são acompanhados por um grito estranho, misto de desespero e susto. Um grito mais parecido com o uivo de um animal acossado. Olho rápido à minha volta e... ninguém, a não ser eu, o indivíduo e aquela faca bem encostada à minha barriga que teimo em encolher. O grito havia saído da minha garganta. Então eu tenho uma reacção daquelas? E um grito assim tão esganiçado? Espanto sobre espanto.
- Passa para cá essa merda!
Indelicado o sujeito. Estúpido de todo. Com que direito me trata por tu?, assim como se fosse um amigo de longa data... francamente. E não saberá ele que me assustou? Tive vontade de o esbofetear e dizer-lhe “- Nunca mais me faça isto OUVIUUU???? Poderia ter tido um ataque de coração, ora faça-me o favor.... que raio, que parvalhão me saiu. Então não sabe que essa faca pode magoar alguém??? Que coisa....” A seguir, tirar-lhe a faca, dar-lhe um golpe de judo ou karate, morder-lhe a mão e partir a faca aos pedacitos. Tudo isso enquanto lhe pregava o maior ralhete e o ameaçava de lhe dar mais se o visse de novo no meu caminho. “- Xô, andor, vá de retro, evapore-se, suma-se tão rápido quanto apareceu na minha frente....”. Nada... Dir-se-ia que o grito inconsciente e irreconhecível - que o meu outro eu mandou para fora de mim – limpou o canal do som, colocou barreiras, fez delete, sei lá. Só a minha barriguinha teimou em se manifestar obrigando-me a respirar pouco, com medo de a expandir, o que poderia dar mau resultado com o bico daquela arma branca que sem ser branca era assustadora como o raio. Atrofiei completamente.
Olho o mágico, o maratonista, o caído do Céu – que eu não o vi atravessar a estrada não senhor . Era um indivíduo de cerca de 20 anitos, tez muito escura, assim mais para o negro, cabelo curtinho, bem apresentado, camisola vermelha e calça de ganga. Parecia até lavadinho. Ora bolas!?!?!?!! Estava ele tão bem do outro lado da estrada, local onde a faca não incomodava nadinha e onde poderia ter continuado... que chatice.
E cadê os heróis??? Hã??? Sim, aqueles que também aparecem de surpresa, torcem o pulso enquanto dão um par de socos ao vilão, assim, sem sequer despentearem um cabelito que seja? Nem vê-los quando são precisos...
Segundos depois do ataque e do meu grito, já lhe dou o telemóvel, o meu companheiro de tantas horas. Faço questão de lhe passar o meu blusão de cabedal que transporto no braço esquerdo, ao mesmo tempo que torço delicadamente o tronco – por causa da faca que nem ouso tornar a olhar – e retiro a mala que transporto como mochila. Dizem que quando a esmola é grande o pobre desconfia e ele deveria ser muito pobresinho porque só quis o telemóvel. Incrédula vejo-o arrancar à bruta o auricolar e com desprezo mandá-lo ao chão.
- Não quero esta porcaria!
Então o anormal não saberá que as ondas electromagnéticas fazem mal ao nosso rico cérebro??? E não consegue imaginar quantos auricolares eu já adquiri para minimizar esses nefastos efeitos? Manda-me assim, sem cuidado algum, o meu querido auricolar para o chão? Parvalhão de todo o estronço. Quer fazer mal à sua saúde, que faça, mas seja mais delicado com as coisas dos outros, ora essa...
Vejo-o afastar-se a correr, em sentido contrário ao que eu tomava e dou comigo já virada na sua direcção, de braço esticado com a mala e o casaco pendurados. Terá levado a faca consigo ou ela ainda ali está, encostadinha a mim???
Breves milésimos de segundo para perceber a impossibilidade, breves milésimos de segundos para me baixar a apanhar o que restava do telemóvel – o auricolar - breves milésimos de segundo para o ver olhar para trás, na minha direcção e perceber a sua hesitação. Ter-se-à arrependido?? A voz do meu outro eu a surgir de novo: “- Não posso tirar uns numerozitos?” tipo último desejo antes de subir ao cadafalso, de forma suplicante... “- Vá lá... só uns numerozitos”. Calo a voz que não reconheço minha enquanto o vejo mudar de semblante, incrédulo. Bem feita... pelo menos surpreendi-o. Ora essa... mereceu. Logo retoma a correria, já sem olhar.
Caio em mim, olho bem a blusa justa ao corpo e não encontro furo algum, nem mancha de sangue... aperto o blusão e a mala contra o estômago, e retomo a minha marcha.
Ahhhhh preciso dizer que o meu filho e dois amigos estavam em casa e, depois de tomarem conhecimento do sucedido, saltaram do sofá (o que nem sempre é fácil) e numa correria desenfreada – indo o meu filho com um taco de baseball – palmilharam com persistência as ruelas fora do bairro. Encontraram-no cerca de cinco telefonemas para Cabo Verde depois. Sacaram-lhe o telemóvel e ainda teve direito a uma basebolada, tendo-se esgueirado com gritos que não terá identificado como seus. Tenho disso experiência e certezinha absoluta.
Afinal os meus heróis tardam, mas não falham.
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