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03 fevereiro 2007

10 minutinhos

Foto: de Maria São Miguel in www.olhares.com




Há quantos anos ali vivia? Vinte? Mais? Pensou, enquanto aguardava que o Sr. Zé do quiosque terminasse a passadeira de peões. Seguiu em busca de um cantinho para o carro. Coisa difícil àquela hora. Ali estava!, bem em frente à papelaria, no cimo da estrada que a levaria à estação de comboios.

Saiu apressada, acenou ao dono da papelaria, que retribuiu o aceno e com a mochila a tentar agarrar-se ao ombro, o casaco a fazer o pino, a chave sem saber para onde ir e a pasta dos papéis a ameaçar deixar fugir todo o seu conteúdo, trancou o carro no trinco. Nunca usava a chave, o que a obrigou a assaltar o seu veículo mais que uma vez, após verificar que a miserável havia ficado na ignição. Com a planta do pé direito empurrou a porta, cuidadosamente, até sentir que esta se encontrava devidamente fechada. Correu pela ladeira, conseguiu tirar o telemóvel da bolsinha e verificar as horas. Ainda tinha tempo para tomar um galãozito com a sua amiga. Estaria ela na pastelaria?

As portas abriram à sua chegada. Antes de descer os três degraus da entrada, olhou em redor e viu o seu vulto junto ao balcão. Falava com a D. Dora, proprietária do estabelecimento. Entrou satisfeita. O Jorge, o mais novo dos empregados transmitiu a sua chegada.

- Galão de máquina com leite frio – disse alto.

Dirigiu-se ao balcão, colocou uma mão sobre o casaco de fazenda castanho claro da sua amiga e olhou-a sorrindo. O rosto da senhora voltou-se e retribuiu em delicado sorriso. Desde sempre vira o seu rosto com aquela candura.

Afinal, há quanto tempo tinha ido para ali morar? Vinte? Mais? Desde que os seus olhos se imaginaram em feliz liberdade. Fariam uns 22 anitos. Meses depois de ter casado com o seu melhor amigo, com quem viria a ter um maravilhoso filho.

A senhora era amiga da mãe de um grande amigo deles, por sua vez, uma mulher única, espectacular. Ambas nutriram por ela, desde logo, um carinho bom, a que não estava habituada.

- Vai comer alguma coisa? – perguntou a D. Dora, remexendo nos bolitos secos.

- Prove!... – disse ainda, sem aguardar resposta, estendendo-lhe um bolito, preso por entre os dentes da tenaz dos bolos.

Agradeceu, enquanto o retirava, ficando todos os seus pertences em completo malabarismo.

- Vai já embora Teresinha? – perguntou a sua amiga, ansiosa.

Teresinha. Sabia bem ouvir o seu nome no diminutivo. A D. Margarida, mãe do seu grande amigo também a tratara assim.

- Não, não. Tenho ainda 10 minutinhos – disse, olhando o grande relógio pendurado na parede, em frente à máquina do café.

- Sabe como é que eu posso conseguir um registo criminal? – perguntou um dos empregados, debruçando-se no balcão.

- Sei sim, Sr. Alfredo. Tem urgência? Trago-lhe amanhã uma folhita para preencher a dar-me autorização de o requerer.

- Não lhe custa nada? Não quero incomodar… - disse

- Não custa nadinha, não se preocupe – respondeu a rir.

Olhou o balcão, em busca do seu galão.

- O Jorge leva. Sente-se – disse a D. Dora, adivinhando-lhe o olhar.

Poderia transportá-lo até à mesa, mas não quis desagradar a senhora. Sentou-se em frente à sua amiga, na mesinha do cantinho, por baixo da grande janela envidraçada. A D. Nanda, arrastou uma outra cadeira para que pudesse colocar as suas coisas.

Trocavam já umas palavrinhas quando o Jorge colocou o copo do galão sob a mesa. Quase ao mesmo tempo estendeu um jornal à D. Nanda, que de imediato o guardou, agradecendo.

- É muito nosso amigo este rapazinho – disse sorrindo – Muito bom rapaz.

- É! Sempre atencioso – assentiu ela.

A D. Dora aproximou-se com uma saco de papel, onde se viam os nome, morada e logótipo da pastelaria.

- Tome. São para o seu lanchinho – disse, estendendo-lhe a saqueta.

- Ora… muito obrigada. É muito gentil – retorquiu, guardando-a na mochila.

Rasgou o invólucro do açúcar e despejou-o no café com leite. Ainda sorria enquanto mexia o líquido com a esticada colher.

- Pois é, Teresinha, é por isto que não quis sair daqui quando o meu marido faleceu – iniciou a sua amiga

– E se cheguei a ver outras casas… lá para os lados do meu filho. Mas sempre aqui vivi… ‘Não vale a pena procurar mais, tu não queres sair daqui, pois não mãe?’, ‘Não filho, não quero!’

O tom de voz demonstrava emoção, assim como se com o próprio filho falasse e despejasse, por um lado, o alívio de ter sido ele a dizê-lo, por outro o sentimento de culpa de não satisfazer o seu desejo de a ter mais perto. Como se a distância a tornasse menos mãe.

- Fez bem, D. Nanda – consolou-a, ao notar-lhe o rosto subitamente entristecido.

- É aqui que criou raízes, físicas e afectivas. Depois, o seu filho rapidamente se põe cá a visitá-la. Hoje há bons caminhos.

- Mal saio de casa, cumprimento uma série de pessoas. Estou habituada, sabe?, todos me conhecem e eu conheço toda a gente. Depois, venho até aqui ao café, cumprimento a D. Dora, o Jorge… Venho na esperança de a ver, para conversarmos um bocadinho. Sei que é a esta hora, mais ou menos, que costuma aparecer – disse, com o rosto a iluminar-se.

- Gosto de conversar consigo, minha filha. Como a Teresinha é muito raro… eu não conheço… – continuou, tocando-lhe no seu pontinho fraco.

Tinha por hábito também a tratar por filhinha e isso provocava-lhe um constante estremecimento na alma. Baixou os olhos marejados, para logo de seguida os desviar para um ponto no infinito, a fim de esconder a emoção. O carinho daquela senhora, aliado à solidão que lhe adivinhava, comovia-a e transtornava-a por completo.

Sempre vira a senhora com o mesmo aspecto, o tempo dir-se-ia que não passava por ela, ao ponto de não saber calcular a sua idade. Setenta? Mais? E que importância tinha isso? A partir de certa altura a idade pouco importa, a solidão?!, essa sim! Se ela, bem mais nova, se sentia tão só… Como seria dentro de vinte ou trinta anos? Teria ela uma Teresinha para conversar alguns instantes por dia?

- Entendo o que me diz. Também eu me sinto bem quando as pessoas se dirigem a mim em tom de conhecimento. É tão bom sentir este bairrismo. Depois, acho fácil sorrir e conversar com as pessoas. Somos uma grande família – riu-se, ainda mal recomposta da doce fragilidade que a senhora lhe transmitia.

- Temos de nos encontrar com mais tempo – retomou, voluntariosa – Poderíamos ir até à praia… bem agasalhadinhas, que ainda faz frio…

- Ai Teresinha, à esplanada da Praia Grande… – interrompeu-a a senhora com ar feliz – É tão bonita aquela praia e está-se tão bem naquela esplanada.

- Isso – concordou entusiasmada, enquanto fazia sinal ao Jorge para que recebesse o pagamento.

- Deixe estar minha filha, hoje pago eu.

Olhou por breves instantes aquele rosto bem tratado, ornado de madeixas onduladas, de branco azulado. Não lhe agradava que a sua amiga gastasse dinheiro com ela, mas percebeu que seria indelicado não aceitar.

- Obrigada – disse, enquanto agarrava as suas coisas e se debruçava para depositar dois beijinhos no seu rosto.

- Temos de combinar… - repetiu, apressada.

- Está bem, minha filha. Vá-se embora, antes que perca o comboio.

- Adeus, boa tarde – despediu-se de todos.

Antes que as portas se fechassem, ouviu ainda algumas vozes responderem: “Até amanhãaaaa.”

Já recostada no banco do comboio, entre triste e alegre pensou como gostaria de ser muitas Teresinhas, para que uma pudesse preencher um pouco a solidão da sua amiga, outra fosse trabalhar, outra conversasse com o filho e ainda outra se refugiasse nos seus pequenos mundos, registando tudo o que sentisse. Se mais houvesse… que bom seria.