(Foto retirada por mim da página do Facebook da "Real República Baco")
Ali estavas tu,
galináceo, como te apodou o meu pai quando um dia, ao visitar-me, te encontrou
à porta da minha casa, na famosa Rua das Flores, 31. Fingi que nem te conhecia,
disse-lhe que achava seres primo de uma colega. Meia verdade. Mal sabia o meu
pai que virias a ser - tão somente - o meu ombro amigo e das pessoas mais
importantes que conheci.
Ali estavas tu,
escondido numa carapaça de humor irónico que se desfazia aos primeiros efeitos
da cerveja partilhada comigo. Pisávamos então os primeiros degraus de gente
livre, ainda cheios de fantasmas. Cheirávamos a adolescentes inocentes e infantis,
com ganas de viver. E ali estava eu, sempre pronta a acompanhar-te nas saídas doidas:
a correr pelo Quebra Costas, rumo a nada, ou pelas ruelas apertadas de cheiro a
sabedoria ancestral. Muitas das vezes seguíamos com o Testa de Quilha, por
isso, muito mais doidos, a interromper a conversa uns dos outros, a querer
tempo de antena, a percebermos laços indestrutíveis entre nós, as nossas
maluqueiras, as nossas ânsias, tudo misturado a dar-nos uma felicidade
indestrutível.
Em Coimbra o meu
mundo era muito mais bonito, mais cheio e – sobretudo – muito menos assustador:
por vossa causa. Mas eras tu que mais próximo te encontravas de mim. Talvez
porque revelavas uma fragilidade gémea da minha. E por isso os nossos sonhos
tocavam-se (mesmo que não os conhecêssemos ainda) e era fácil conversarmos,
como se a vida (no meu caso tão má) não existisse para além da amizade que nos
unia. O nosso mundo era uma autêntica correria de querer respirar, de querer
que o ar jamais acabasse de nos inebriar. A miúda toda certinha, de educação
exemplarmente castrante, tinha amigos: amigos homens (sacrilégio!), com quem
saía pela noite fora a entrevistar “homens do lixo”. E gostava! Gostava da
cerveja a correr de boca em boca, dos cigarros partilhados, da sede de viver. E
nem as proibidas palavras que sempre disseste em catadupa, me fizeram não
gostar de ti. Por isso vestia a tua roupa e saía de bigode pintado a lápis dos
olhos, só para fingir que não era eu, para me disfarçar, mas no fundo, no fundo,
era só porque sim. Por isso te engravidavas de pão roubado à porta da Faculdade
de Medicina, para juntar ao leite magistralmente retirado da porta do Hotel, na
margem do Basófias.
Foram dos melhores
tempos que vivi. Tempos pintados de horrores, graças a um passado estúpido,
gravado a muito sofrimento e à flor da pele, que ajudavas a atenuar até ao
esquecimento. O riso, libertador e sempre novo, misturava-se com todas as
maroteiras, todos os dizeres e trapalhadas que inventávamos: bombinhas de
Carnaval a rebentar na sala da Baco, com fugas atabalhoadas e bastante
barulhentas; baldes e alguidares cheios de água à espera do incauto, ao ponto
de dificilmente existirem roupas secas para vestirmos; enceramento exagerado do
soalho velho, logo à saída dos quartos para que algum desgraçado se
espatifasse; despejamento dos quartos, com toda a mobília colocada em frente à
Igreja; fugidas à polícia… E quase sempre tu a seres culpabilizado pelo
senhorio pelos estragos de tanto “vandalismo”.
Ninguém te mandava
espreitar pela janela, de cada vez que, após as traquinices, tocavam a
campainha.
E hoje lembraste-me
de alguns dizeres outrora escritos nas paredes da República:
Se a merda
Desse música e som
A cabeça do Rui
Era uma televisom.
(autoria: Dina Paula
tua prima)
“Vou para casa que
tenho a roupa ao lume”
(Teresa, depois de
umas garrafitas, no Califa)
E
Assim fazíamos jus ao
poeta:
“Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
A nossa foi sempre
enorme.
Alguma vez te
agradeci?