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27 junho 2017

A um grande amigo, que “quase sempre” fez anos um dia antes de eu fazer



(Foto retirada por mim da página do Facebook da "Real República Baco")



Ali estavas tu, galináceo, como te apodou o meu pai quando um dia, ao visitar-me, te encontrou à porta da minha casa, na famosa Rua das Flores, 31. Fingi que nem te conhecia, disse-lhe que achava seres primo de uma colega. Meia verdade. Mal sabia o meu pai que virias a ser - tão somente - o meu ombro amigo e das pessoas mais importantes que conheci.

Ali estavas tu, escondido numa carapaça de humor irónico que se desfazia aos primeiros efeitos da cerveja partilhada comigo. Pisávamos então os primeiros degraus de gente livre, ainda cheios de fantasmas. Cheirávamos a adolescentes inocentes e infantis, com ganas de viver. E ali estava eu, sempre pronta a acompanhar-te nas saídas doidas: a correr pelo Quebra Costas, rumo a nada, ou pelas ruelas apertadas de cheiro a sabedoria ancestral. Muitas das vezes seguíamos com o Testa de Quilha, por isso, muito mais doidos, a interromper a conversa uns dos outros, a querer tempo de antena, a percebermos laços indestrutíveis entre nós, as nossas maluqueiras, as nossas ânsias, tudo misturado a dar-nos uma felicidade indestrutível.

Em Coimbra o meu mundo era muito mais bonito, mais cheio e – sobretudo – muito menos assustador: por vossa causa. Mas eras tu que mais próximo te encontravas de mim. Talvez porque revelavas uma fragilidade gémea da minha. E por isso os nossos sonhos tocavam-se (mesmo que não os conhecêssemos ainda) e era fácil conversarmos, como se a vida (no meu caso tão má) não existisse para além da amizade que nos unia. O nosso mundo era uma autêntica correria de querer respirar, de querer que o ar jamais acabasse de nos inebriar. A miúda toda certinha, de educação exemplarmente castrante, tinha amigos: amigos homens (sacrilégio!), com quem saía pela noite fora a entrevistar “homens do lixo”. E gostava! Gostava da cerveja a correr de boca em boca, dos cigarros partilhados, da sede de viver. E nem as proibidas palavras que sempre disseste em catadupa, me fizeram não gostar de ti. Por isso vestia a tua roupa e saía de bigode pintado a lápis dos olhos, só para fingir que não era eu, para me disfarçar, mas no fundo, no fundo, era só porque sim. Por isso te engravidavas de pão roubado à porta da Faculdade de Medicina, para juntar ao leite magistralmente retirado da porta do Hotel, na margem do Basófias.

Foram dos melhores tempos que vivi. Tempos pintados de horrores, graças a um passado estúpido, gravado a muito sofrimento e à flor da pele, que ajudavas a atenuar até ao esquecimento. O riso, libertador e sempre novo, misturava-se com todas as maroteiras, todos os dizeres e trapalhadas que inventávamos: bombinhas de Carnaval a rebentar na sala da Baco, com fugas atabalhoadas e bastante barulhentas; baldes e alguidares cheios de água à espera do incauto, ao ponto de dificilmente existirem roupas secas para vestirmos; enceramento exagerado do soalho velho, logo à saída dos quartos para que algum desgraçado se espatifasse; despejamento dos quartos, com toda a mobília colocada em frente à Igreja; fugidas à polícia… E quase sempre tu a seres culpabilizado pelo senhorio pelos estragos de tanto “vandalismo”.

Ninguém te mandava espreitar pela janela, de cada vez que, após as traquinices, tocavam a campainha.

E hoje lembraste-me de alguns dizeres outrora escritos nas paredes da República:

Se a merda
Desse música e som
A cabeça do Rui
Era uma televisom.

(autoria: Dina Paula tua prima)

“Vou para casa que tenho a roupa ao lume”
(Teresa, depois de umas garrafitas, no Califa)

E

Assim fazíamos jus ao poeta:
 “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
A nossa foi sempre enorme.


Alguma vez te agradeci?

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