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26 janeiro 2006

A Culpa foi do “Metro”



Mais um dia de trabalho e a usual correria para os transportes que me devolve ao “lar doce lar”. Saio a porta da minha “prisão” e quase desemboco na gare do Metropolitano, que me levará a uma estação dos caminhos-de-ferro, onde apanho o comboio até à minha zona de residência. Aí, poucos passos mais e entro no meu fiel popó, caso a polícia não o tenha retirado, numa manifestação de zelo, bem se vê.

Hoje o “Metro” resolveu não aparecer, assim, sem mais nem menos, sem explicações, sem motivo aparente, apenas não veio, mais nada. E de criticado transporte passou a desejado, mas mesmo assim não veio.

Na companhia de duas colegas, atravessei a majestosa Avenida, sem respeitar passadeiras ou sinais, fintando carros e motas, autocarros e outras incautas pessoas.

Na mira fixei qualquer autocarro que me despejasse na estação de comboios. Não me senti aborrecida, mas a viver uma pequenina aventura – ao que cheguei... andar de autocarro, olhar o trajecto por cima do asfalto, sentir a noite chegar pelas luzes, cada vez mais vivas, dos candeeiros, enfim sair dos meus hábitos de toupeira, a tudo isso chamo “uma pequenina aventura”... ai ai.

A pequena ondulante lagarta mostrou na sua cauda alguns lugares disponíveis, sorte a nossa que juntas poderíamos ir na converseta. Saltitantes, para lá nos dirigimos. Sentei-me bem na frente de alguém, cara com cara, enquanto as minhas duas colegas se sentaram, uma ao meu lado e a outra ao lado desse alguém. À nossa volta um cheiro a mosto transmitiu-nos um inesperado enjoo. Olhei atentamente a pessoa à minha frente. De corpo disforme, blusa de malha esburacada, em tons de vinho, saia indescritível, uma mulher abraçava uma mala preta de senhora. As mãos apresentavam unhas sujas. O cabelo quase liso, cheio de óleo, dava-lhe pelos ombros e estava seguro por uma bandolete dentada que deixava escapar para a testa uma pegajosa franja. O rosto comprido, de tez acastanhada, carregava um nariz comprido sob o qual se desenhavam dois olhos pequenos, ainda vivos, em baixo, a boca ligeiramente enrugada, de lábios finos, quase sem cor, por onde uns dentes pequenos e escuros faziam a sua aparição. O cheiro vinha dali, daquela mulher, que atentamente nos olhava.

Cuidadosamente e sem pressas, fazia surgir da mala as alças de um qualquer saco de supermercado que entreabria, para logo de seguida, elevar a mala à altura da boca, colocando uma das mãos por debaixo desta e a outra por dentro do saco de plástico.

Desviei o olhar, incrédula. Ouvi o som da deglutição e vi o pousar cuidado da mala sob os joelhos tapados. Curiosa, levantei o olhar e cruzei-o com o seu.

- Está calor! – afirmou. Enquanto escondia o saco plástico, e me mostrava um largo sorriso.

- Sem dúvida! – reforcei, com alguma malícia.

Percebi os risos à nossa volta.

Iniciei a leitura de uma revista comprada nessa manhã.

- Revista cara... – disse a mulher – bonitaaaaaaa... mas cara!

- É! – assenti eu – fala de lugares bonitos.

- Ah pois!, muito bonitos... e caros...

Sorri-lhe, enquanto a vi levantar de novo a mala e com esta o saco de plástico que escondia a garrafa da bebida. Mais uns golitos, seguidos de uma limpeza dos cantos da boca, com a palma da mão esquerda.

Os risos, cada vez mais audíveis, fizeram-me virar a cabeça para os utentes daquele transporte. Alguns, não ligando ao frio que vinha do exterior, escancararam o mais que puderam as janelas do autocarro, outros, taparam o nariz com as mãos e lenços de papel, eu (que sou humana, e por vezes me armo em parva) retirei um creme da minha mala – daqueles cremes caros e perfumados – e espalhei pelas mãos, dando de seguida a embalagem às minhas colegas que, rindo, me imitaram agradecidas.

De seguida tornei o olhar para aquela mulher que, parecendo não perceber o que se passava ao seu redor, continuava a beber recatadamente o líquido causador de tal movimentação.

Falou do tempo, sempre de sorriso pronto, falou dos seus tempos de escola, da letra bonita que tinha, de Salazar, da defesa de uma qualidade de vida que não tinha... das saudades da sua meninice, e fê-lo sem lamentos, sem largar o sorriso tingido de bebida. Dei por mim a mostrar-lhe os sítios lindos, a comentar os locais, a ouvi-la mais atentamente.

Captou a minha atenção e a dos que nos rodeavam e aos poucos, com desconforto, senti-me mais próxima dela que deles. A tristeza apoderou-se de mim, tanto quanto a cobardia. O que passei a sentir agoniou-me mais que o cheiro desagradável da bebida.

Aquela mulher conseguira, na sua desgraça, unir pessoas que jamais se falariam, uniu-nos pelo sarcasmo, pelo cinismo, pela oportunidade de nos sentirmos maiores na sua suposta pequenez, assim, sem dó nem piedade. Deu o motivo, que tão prontamente aproveitámos, para um gratuito gozo, sem defesas, alheadamente.

Na sua inocência, manteve o decoro que nos faltou, mostrou a educação que não tivemos, o respeito pelo próximo que esquecemos e, pelo menos em mim, deixou a dor do desabafo simples, num único pedido...

- Posso ver a letra da revista? É tão linda...

Dei-lha, não por dó, não como esmola... ela merece-a mais que eu.

24 janeiro 2006

17 Anos



14 de Outubro de 2005

Fazes 17 anos... fico sem palavras ao pensar como o tempo passa tão rápido!

Parabéns filho meu! Que sejas muito feliz na vida que te dei, mas lembra-te de dar uma ajudinha, isso é indispensável.

Por vezes somos os nossos piores inimigos, no entanto, eu acredito que TU - o MEU FILHO LINDO - um dia vai sorrir ao perceber que a felicidade se constrói pedacito a pedacito, como um puzzle, com muita paciência, mas essencialmente com empenho e decisão.

Sorry se tudo isto soa a lição de moral, não pretendo tal, apenas quero recordar-te que acredito em ti como ser humano, não porque nasceste de mim, mas porque, ao olhar-te, a ternura que sinto é tão grande que não cabe dentro do meu coração e eu SEI que jamais sentiria ternura tamanha por alguém que não merecesse.

Escusado se torna dizer mais...
Tu sabes o quanto desejo que sejas feliz...
Tu sabes o quanto anseio que nada de mal te ensombre esses olhos lindos...
Tu sabes o quanto esta mãe te ama!

Faz-me o favor de ACREDITAR EM TI!!!!!
E
PARABÉNSSSSSSSSSSSSSSS



24 de Janeiro de 2006

Hoje acrescentaste o teu nome à lista de recenseamento militar, tu - o meu filho lindo – o bebé que vi nascer e que mal sentiu o exterior de mim, de pescoço bambo e tamanhos olhos esgazeados, parecia perguntar-me o que tinha acontecido ao lugar que o mantivera quentinho e confortável durante nove meses, o local onde sentia o bater do meu coração, tão perto.

O bebé que teimava em dormir em qualquer sítio, sem choros, o bebé glutão que embelezou a minha vida, lhe deu sentido, me acrescentou em importância e orgulho. O bebé que se fez criança, uma criança linda, que descia as escadas pé ante pé, de olhar maroto e mão levantada, onde eu via um polegar pertinho do indicador, sinal de que queria “só mais um pocaninho”, antes de dormir – e eu não resistia, sorria, fazendo-a correr até mim, onde se aninhava nos meus braços por mais esse “pocaninho”.

A criança que me espantava com as pertinentes perguntas e que jamais exigiu o que não podia ter. A mesma criança a quem eu deixava pregar-me partidas e sustos, rindo da minha cara e que em noites de medo me chamava, em aparente calma, com um repenicado “mãããããeeeee”, baixinho, mas o suficientemente audível, para me levar ao seu quarto onde, à força de socos no ar, espantava do seu imaginário os fantasmas e monstros, até à calma, até o sono vencer. A criança que fazia teatro, se mascarava, dançava, cantava e em poses incríveis se deixava fotografar. A criança que teimava em colocar mochilas às costas e que, dizendo-me adeus, abria a porta e saía, em busca de algo que imaginava ser capaz de encontrar, obrigando-me a segui-la, maravilhada com a sua audácia.

A criança que defendeu ideais, sem medo, surpreendendo professores pelas noções de justiça e igualdade de direitos, teimosamente, sem vergar. Aquela criança que me segurava a mão e em risos ansiosos me obrigava a segui-la pelos lancis dos passeios, até casa, contando os desequilíbrios que nos fazia “cair” dos mesmos, até sete quedas a que dava o nome de “vidas”. Aquela que, perante o olhar curioso das pessoas, me obrigava a esconder e a escondê-la dos dinossauros (simples carros estacionados), sussurrando um “cuidadoooooo” enquanto avançava devagar, de cócoras, até decidir que não existia perigo, fazendo-me correr e soltar vários ufffs de alívio ao avistar o seu bracito levantado, sinal de que o caminho estava livre e que mais uma vez me tinha salvo a vida.

Foste sempre especial e eu uma mãe de sorte.

Hoje, aos 17 anos, colocaste o teu nome numa lista - uma lista de mancebos... pondo a hipótese de seres voluntário, sabe-se lá com que resultados, sabe-se lá para quantos lancis atravessares, quantos fantasmas, monstros e dinossauros afugentares, só que desta vez só, sem mim, a tua mãe.

Amo-te filho-homem, não te esqueças que estou aqui, atenta ao levantar do teu braço, de olhos postos no polegar e indicador das tuas mãos, sempre disposta a dar-te mais um “pocaninho” de tempo, esse tempo que sendo meu é e será sempre teu.

20 janeiro 2006

Quero a Minha Alegria de Volta e Já!


Quisera escrever algo alegre, mas não sai nada que a isso se assemelhe. Porque diabo escreverei eu se saem contínuas tristezas destas frases? O choro espreita por detrás das órbitas, o esforço que faço em não chorar vence-se a ele próprio e... choro! Que raivaaaaaaaaaa!!!!

As lágrimas saem em catadupa e queimam-me as faces que já não sinto minhas. Algo se passa em mim que me desagrada. Ando demasiado triste, faço das tripas coração para não chorar à toa, em frente de qualquer um. Alheio-me dos outros colocando os headphones por onde saem notas de músicas repetidas. Nem sequer me esforço por “virar o disco”. Anseio todos os dias por chegar a casa e deitar-me para cima de uma cama onde desabafe as minhas mágoas. Desabafe, disse eu... que desabafo?, se não sei o que se passa na realidade. O que é certo é que chego a casa e não quero nem olhar para cama alguma. Estou vazia... credo... vazia! Pareço derrotada, não consigo ver as alegrias, não rio, não protesto, pareço aceitar tudo sem questionar.

Estou verdadeiramente assustada comigo. A qualquer momento parece que a corda não vai aguentar mais e rebenta. Pior é que não sei se é elástica e me projectará ou não para algum sítio onde me quede para sempre, derrotada, sem forças, toda partidinha.

Parece-me ser uma questão de tempo. Com um pouco de sorte caio para o lado certo e levanto-me de um ápice, com todos os ossos intactos, cheia de vontade de viver, com um respiro pleno de cores quentes e emoções alegres.

Até lá... sinto a queda abrupta da montanha da vida fria, coberta de neve, que me vai gelando a alma e o corpo e me inanima para a vida, pior é que estou a deixar...

Não é novidade alguma que não sei o que quero... repito-me sempre. Só que desta vez para além do não saber, não me sinto aquela pessoa que acredita no amanhã e não se importa com o desconhecido..

A revolta nem sequer é revolta é derrota. Ufff. Derrota não sei de quê, por não saber qual a luta que travo (ou travei?). Por que raio de caminhos ando eu?? Que ânsias são as minhas, que desejos, que vontades, por que credos e credulidades me movo?

Ai... que já nem sei de mim, ai... que já não encontro a minha pessoa, ai... que o grito não sai e eu sufoco e morro. Ai Ai...

Penso ainda que tudo passará. O sofrimento não é de todo algo que goste sentir, daí o meu espanto. Em outras alturas luto sempre, rio e canto e danço. Agarro-me à esperança, às cores do imaginário. Só que não me apetece imaginar nada. Perdi a fé nos sonhos, não quero sonhar, não quero sonhar, não quero sonhar.... NUNCA MAIS! NUNCA MAIS! Nunca Mais! nunca mais! E não sei contra o que lutar... contra mim? De novo? Sempre?

As palavras doem-me, as frases agridem-me e eu estou um completo chaço, torcido e enferrujado.

Falo alto o meu nome implorado, suplicado, mas o coma não me larga e a voz fica longe, mal me toca. O meu corpo dobra-se que nem um pacote hermético, não deixa entrar a mão que estendo. Recuso a minha ajuda, não me aceito, não sei o que dizer-me, o que fazer-me.

Estou no luto de mim mesma... Morri!?

17 janeiro 2006

Coincidências


Na nossa fúria de viver, de encontrar o belo nas pequeninas coisas, de encontrarmos paz no simples respirar, tínhamos descoberto algo que toldava a nossa alegria: - o pânico, esse maldito horror que ambas descobrimos sentir e que, fruto de ansiedade, teimava em aparecer sem aviso, tanto nos angustiando.

De forma egoísta fiquei feliz por alguém, principalmente tu, sentir esses medos. Eu já não estava sozinha, minha querida amiga.

Um dia, em tua casa, mostraste-me um livro de escrita inglesa, onde vários tipos de pânicos eram explicados. Lembro-me que, qual caso perdido, hipocondríaca, me englobei em vários tipos.

Embora não sentisses pânico desde o nascimento de tua filhota, ajudaste-me a entender alguns motivos que me levavam a esses episódios surrealistas. Um deles, e mostravas-me o tal livro, era o medo que eu tinha de ser feliz. Tu também passaras por isso. O medo de ser feliz, imagine-se... Ambas tínhamos medo de ser felizes, por medo que a felicidade acabasse ou que no-la roubassem.

A identificação era perfeita. As duas sentíramos num ou outro momento da vida o abandono, a frieza a solidão. Ambas acreditávamos que iríamos vencer essa batalha, minimizando as cicatrizes que teimosamente sulcavam as nossas almas. Tínhamo-nos, podíamos contar uma com a outra.

Creio que quanto mais nos conhecíamos mais gostávamos de estar juntas e se nunca fizemos troca de sangue, como num ritual índio, foi porque tu nunca te lembraste de tal coisa. Ou fizemos?

E agora?... A tua partida deixou-me desanimada perdida. Não sei gritar ao mundo a tua perda, os gritos abafam-me a garganta numa inevitável bola imensa de amargura, tristeza e raiva. Sei que te lembro, mas ainda não separei a falta que me fazes, das lembranças que um dia foram reais e vivi contigo.

Quisera gritar a falta que me fazes, chorar toda a raiva e desespero... o alívio que encontraste não tapa o meu egoísmo, a minha saudade. Tenho medo do irremediável, tenho medo de nunca mais te ver e ouvir, tenho medo... porque adoeceste amiga? Porque me deixaste?

Lembras-te daquele poema maravilhoso cantado pela Alcione?

Por vezes canto-o:

“Silêncio!... Morreu um poeta no morro
Num velho barraco sem forro
Há cheiro de chuva no ar
Mas choro que tem bandolim e viola
Pois ele falou lá na escola
Que o samba não pode parar

Por isso, meu povo no seu desalento
Começa a cantar samba lento
Que é jeito da gente rezar
E dizer que a dor doeu
Que o poeta adormeceu
Como pássaro cantor
Quando vem o entardecer
Acho que nem é morrer

Silêncio!... mais um cavaquinho vadio
Ficou sem acordes vazio
Deixado num canto de um bar
Mas dizem ”_ Poeta que morre é semente.
De samba que vem de repente
E nasce se a gente cantar”


É um samba magoado que fortalece com a sua mensagem. Nele te revejo, minha amiga, deitada, em silêncio... que nem dormindo, enquanto eu, cavaquinho, vazia, tento cantar e nesse canto acordar-te.

Naquela horrenda e inacreditável tarde cinzenta e chuvosa, anestesiada, olhei-te nesse teu sono profundo. Vislumbrei uns fios dos teus cabelos espreitando por baixo de um véu branco e rendado. Ao contrário de alguns, não tive coragem, nem tão pouco curiosidade ou necessidade de o levantar, por mim e também por ti.

Tive vontade de te tocar, mas tive medo, aquela não eras tu, não podias ser e... no entanto... ali estavam uma série de pessoas que gostam de ti, uma quantidade de gente que te ama... e choravam!... Dentro de mim algo diz que é uma fantasia, um sonho, um pesadelo, que um dia eu vou acordar desta loucura e vou encontrar-te, à minha espera, com esse sorriso lindo e meigo, convidando-me para mais uma aventura das nossas... “_ Anda Teresocas... anda!...”, e eu vou, irei sempre, sempre!

Um dia, ao entrar em casa vou ter um telefonema teu a convidar-me para uma caminhada. Subiremos a serra bem até ao cimo e à beirinha daquelas rochas largas, enormes e convidativas vamo-nos deitar saboreando o sossego e o ruído das plantas, enquanto o nosso olhar repousará viajando pelas copas verdíssimas da imensa florestação.

A tua imagem estará sempre ligada à serra, guardada junto à minha imagem, as duas num rodopio constante que terá como refúgio o meu coração. Nele existem dois banquinhos onde nos sentamos, ora revivendo as nossas experiências, ora especulando sobre a humanidade e a sua complexa simplicidade, ora imaginando mais traquinices, mas rindo... rindo constantemente.

Amo-te minha amiga!

Você é Linda


VOCÊ É LINDA
Caetano Veloso (Brazil)
... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Linda e sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer e diz
Você é linda mais que de mais
Você é linda sim
Onda do mar do amor que bateu em mim
... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
A primeira vez que passei a noite fora de casa - mais propriamente casa da minha sogra - foi a teu pedido. Não hesitei, nem medi consequências, aceitei. O meu marido, percebeu perfeitamente. O teu marido, também não complicou.

Lá fui eu de trouxa aviada, entusiasmada, qual adolescente que aguarda ansiosa o sábado à noite para sair com os amigos. Tinhas-me feito a proposta, com aquela tua maneira doce envolvida de pequenos risinhos ansiosos.

_ Vá lá Teresocas... Só nós duas, sem homens. Vamos conversar, vamos?!

_ Vamos!! - respondi, entusiasmada.

E fomos!

O quanto nos divertimos ao som do piano - tocado pelo irmão do José Mário Branco. Relembro nitidamente a nossa alegria. Nunca tinha reparado que era bom voar. Nessa noite, inocentes, voámos no teu riso e no meu. Nas palermices, ditas em forma de banda desenhada, aligeirámos os nossos temores, os nossos descontentamentos. Não houve homens, ainda que tivessem tentado a aproximação, mas houve um olhar fatal que, sem hesitações, decidimos pertencer uma à outra, o que nos provocou imenso riso – o olhar de uma actriz de teatro e cinema. Desde logo nos perdemos em conjecturas levianas.

O som espalhava-se rápido pela sala pequena, revelando-se numa música tocada em jeito de bossa nova, que ficou para sempre no meu coração. Tu tinhas uma cassete com essa música, creio que cantada pelo Caetano Veloso... “Você é linda...” - dizia a canção. Tu estavas linda, eu sentia-me como tal. Essa canção será sempre tua, sempre!

Quando regressámos, fizemo-lo pela Avenida de Ceuta. A estrada tinha lombas de um lado e outro da faixa central, desencontradas. De imediato resolveste fazer o trajecto pisando o mínimo de lombas, enquanto fingíamos que éramos alvo de uma perseguição desenfreada de um “Al Capone” qualquer. Disparávamos os nossos dedos, como se armas fossem, baixávamos a cabeça evitando as balas que repetidamente silvavam mesmo por cima delas, tudo ao som aterrador e cinéfilo de “_ Cuidaaaaadoo...”, enquanto imaginávamos em voz alta o som dos vidros do carro a estilhaçarem, com os tiros de metralha do inimigo, até que, as lombas acabaram e com elas a velocidade, e a doidice de andarmos de um lado ao outro da estrada, e os disparos, e os gritos...

Restou o riso verdadeiro, o contentamento sincero de nos termos divertido. O espanto de, já tão crescidas, sermos tão pequeninas. Nada disso teria sido possível sem ti, mas acredito que tenhas pensado que só foi possível por minha causa.

Até casa fomos repetindo: “_Você é linda...”, inventámos letras engraçadas para a música. Relembrámos a noite, mais uma noite mágica feita de simplicidade e inocência, uma noite que colocou nos nossos olhos todas as suas estrelas.

Fiquei em tua casa, onde tu asseguravas que o teu marido decerto não dormiria enquanto não chegasses. Eu pensei se o mesmo aconteceria com o meu. Foi o meu momento triste e saudoso. Conversámos sobre isso. Tanto tu como eu acreditávamos que os homens eram muito estranhos.

No dia seguinte, na sala de refeições, sobre uma alva toalha de mesa – que contrastava com as nossas profundas e negras olheiras – colocámos leite, cacau, flocos, doces, geleias, pão, tostas, manteiga de amendoim... um infinito de coisas boas para a refeição mais importante das duas – o pequeno almoço. Refasteladas e insaciáveis deliciámo-nos.

Inevitavelmente, sempre que nos encontrávamos a conversa também versava sobre eles – os nossos homens. Tecíamos considerações e considerações... jamais soubemos o que fazer para que funcionasse uma relação. Por último, quando eu já estava separada e só, afirmavas com toda a convicção que os homens andavam cegos ao não me verem.

Quanto a mim, nunca consegui imaginar que alguém te pudesse fazer zangar, muito menos fazer sofrer uma pessoa tão maravilhosamente linda.

Até Sempre

Minha querida amiga.

Morreste e o mundo ficou mais pequeno e sem graça.

Acordo e um pouco da minha alegria deixa-se ficar dormindo. Não há motivos para rir, sabendo que morreste, que esse teu riso quente e envolvente só existirá na minha lembrança. Dói bem fundo!
Tenho saudades! Morro de saudades!

Sinto raiva, mais que tristeza!

No dia dos teus anos chorei enquanto olhava o Céu. Este, raiado de fios laranjas, trazia no ar o cheiro da Primavera dentro do Verão. Fumei um cigarro, sentada no chão, à entrada da casa de um amigo meu e lembrei-me mais uma vez dos nossos anos e da impossibilidade de os festejarmos de novo juntas.

Lembras?

Toda a gente me dizia que dava azar festejar os anos antes de os fazer – que era o meu caso - mas parece que não tiveram razão, pois não?... Ou tiveram?

Partiste minha amiga. Não sei se existe vida para além da morte, mas eu por cá estou triste e não me consolo. Assim, e de forma profundamente egoísta, perdoa-me, mas acho que afinal tive azar. Azar por ter ficado sem ti, azar por continuar a lutar pela vida, sem a tua ajuda, sem o teu sorriso sem a tua dádiva, essa tua maneira simples e admirada de ver e sentir o mundo, numa incessante alegre e contagiante descoberta.

Lamento!

Fica-me o teu riso, infantil, sonante e verdadeiro. Tão querido, tão único. Fica-me ainda as nossas conversas, as nossas brincadeiras, os nossos sonhos, fantasias, inventos, fica-me as consentidas “escapadelas” aos nossos maridos, para inocentemente bebermos um copo no “Copo de Três”. Só nós duas... e as nossas profundas, ainda que leves conversas, com o usual feedback.

Tínhamos tanto em comum. Tu gostavas tanto de mim, eu... gosto tanto de ti minha amiga!

A Vida é Bela

Um dia, depois de fecharmos a loja, fomos ter com um primo teu que se encontrava em Lisboa, por uns tempos, em casa de um dos teus cunhados. Tinhas combinado com eles ir à Marconi buscar uma encomenda que a mãe do teu primo enviara do Norte.

Todos enfiados no carro, alegres
e jovens, lá fomos buscar a dita encomenda, ao som da música de Célia Cruz. Uma cassete que eu tinha gravado e que possuía envolventes ritmos cubanos, bastante alegres.

Já em Santos, estacionámos o carro em frente à Marconi. O teu primo e cunhado foram buscar a encomenda e nós, de música em altos berros, cantávamos encostadas uma à outra, balançando o carro com a nossa dança. De repente, do outro lado da rua, de mão esquerda elevada e mão direita apertando o estômago, tronco ligeiramente inclinado que rodava para um lado e para o outro, um mendigo dançava ao som da nossa música, ora dando uns passos à frente, ora dando outros para trás, num ritmo perfeito e cadenciado. Foi um momento mágico. Levantámos ainda mais o som, extasiadas. O mendigo parou por breves instantes, os suficientes para verificar o conteúdo de um caixote do lixo, logo reiniciando a sua dançante marcha.

Sentimo-nos tão felizes por aquele momento. As nossas almas dançaram com o mendigo. A nossa vontade foi a de abraçarmos aquele homem que demonstrando gostos musicais iguais aos nossos, dançava tão bem, sem olhar uma única vez para o local de onde surgia o som. Quiséramos ter uma varinha mágica com a qual fizéssemos retroceder o tempo até ao momento em que ele era um ser humano “digno”, e fazê-lo continuar uma vida melhor.

Sentimos necessidade de perceber... mas não sabíamos exactamente o quê. Tínhamos a certeza de que o certo e o errado se misturavam, confundindo-se e confundindo-nos de tal forma que sendo nós o ponto de partida do acontecimento, nos transformava em entusiasmadas e impotentes espectadoras, nada mais. Pensámos nos emaranhados caminhos que os seres humanos seguem e que, por vezes de forma inevitável, lhes tolda a liberdade... mas o que era a Liberdade para nós? O que era a Liberdade para aquele Homem?

A única certeza, certezinha é que nós tínhamos entrado na vida dele e ele na nossa. O homem afastou-se a magia ficou.

Saímos do carro e no passeio dançámos, imitando os trejeitos dele. Equilibrámo-nos nos lancis fingindo andar em cima de arame, como nos circos: "_ Cuidado Paquito... Cuidado". Os olhares dos outros nada nos diziam. Abraçámo-nos... um abraço dançante, de rabos empinados. Rodopiámos, ora para a esquerda, ora para a direita, desencontradas, enlaçando os braços... Queríamos ser livres que nem o mendigo. Nada mais importava.

De regresso ao carro, os nossos parceiros de tarde traziam um pacote enorme, pacote esse que decidimos abrir no Castelo de S. Jorge. Pelo cheiro que saía deste descobría-se um presunto que adivinhámos delicioso.

Nessa esplendorosa tarde, já dentro das ameias do castelo e à revelia dos guardas, abrimos o pacote. Dentro dele o esperado presunto, queijos, bolas de carne e outras iguarias. Abrimos uma garrafa de bom vinho e deliciámo-nos num convívio são, que decidimos continuar pela noite fora.

Jantámos no Bairro Alto e, mais tarde, visitámos uma discoteca da 24 de Julho. Tudo simples, somente com a sede imensa de viver, de trocarmos palavras, frases, opiniões e risos com outras pessoas que de alguma forma, dentro delas, trouxessem também essa necessidade de viver alegremente transmitindo alegria.

Foi um fim de tarde e noite espectaculares, mágicas.

16 janeiro 2006

Vêm aí os Nossos Anos


Eis que eles aí vêm, os nossos anos. Os primeiros a passarmos juntas. Lembras-te? Tu fazes anos a 14 de Junho, eu a 28 do mesmo mês, decidimos festejar os anos a 21. Claro que foi ideia tua e que bela ideia.

Festejámos no mesmo dia, em Sintra na casa que outrora havia pertencido ao teu pai. Senti-me pequenina nesse local. Esse acontecimento foi mais que uma prenda inesperada para mim. Não tinha posses para fazer uma festa como a que realizámos, mas sobretudo jamais havia me divertido tanto para os preparativos de um aniversário meu, como desta vez o fiz... como acabámos por fazer ambas.

Pensámos em tudo até ao ínfimo pormenor. Nos comes e bebes, nos jogos, nas surpresas... Levámos para a Loja de Vendagem um gravador. Tentámos ser o mais realistas possíveis na imitação de sons sobrenaturais, guinchos de animais e sei lá mais o quê. Tudo o que parecesse ao ser humano assustador e arrepiante. Na cave da loja, sempre que podíamos gravávamos esses sons. Eu guinchava, tu imitavas uivos de lobos, enquanto arrastávamos correntes e hastes de flores e folhas plásticas. De vez em quando um grito estridente cortava o ar. A certa altura dei um pontapé num balde de latão que virou, espalhando água suja de limpar o chão, não sem antes nos salpicar da mesma. Gargalhada geral, até às lágrimas e, claro, nova gravação. Finalmente, a fita continha um registo, no nosso entender, verdadeiramente assustador.

De entre os espécimens à venda na loja, tomámos de emprestado umas cabeleiras longas e umas camisas de dormir. Enquanto os clientes não chegavam – e quem dera que não chegassem – redigimos regras de jogos, entre os quais o da corrida de sacos e a busca ao tesouro. Seria neste último que assustaríamos o pessoal.

Resolvemos ficar em Sintra de véspera, para termos tempo de preparar tudo. Mais uma vez, de trouxas e bagagens, sacos, saquinhos e sacões, lá fomos em direcção à lindeza de serra, portento de Sintra.

Tudo o que estávamos a preparar tinha o gosto do irreal, de tal forma que, de carro e ânimos a abarrotar, já no meio da mata, em plena subida, nos pregámos um susto inesquecível. Desligaste as luzes do carro, enquanto falavas na hipótese do aparecimento de lobos e lobisomens e... eu alinhei. O carro seguia muito devagar porque à nossa frente o caminho não se percebia. De repente, no meio daquele nervoso miudinho desatámos aos gritos, trancámos as portas, ligaste as luzes e... rodas para que vos quero. Só parámos à porta de casa, cheias de medo, e de pressa em o descarregar.

Já dentro de casa, trancas à porta e adrenalina a descer muito lentamente, nervosas rimos, mas... decididamente desta vez não achámos muita piada. Foi uma experiência para esquecer e, sobretudo, não repetir.

A atmosfera da casa deixou-me deveras agradada. Na altura esta não tinha sido sujeita a obras. Lembro-me que tinha uma lareira espectacular que teimosamente mantivemos acesa e nos dava um clima acolhedor, quentinho. Com fraca luminosidade, a sala e cozinha irradiavam uma auréola cor de laranja, transmitida pelo fogo da lareira.

A ideia era fazer doces, salgados, sopas... Lembras-te daquele teimoso caldo verde que nunca mais cozia? Pois é... aquele maldito panelão de sopa sobre o qual tinha de me pôr em bicos de pés para mexer os fios de hortaliça que abundavam aos milhões, num nunca mais acabar de verde. Horas e horas e horas e a sopa não cozia. Eu, desde sempre a mais ansiosa, não consegui aguentar a espera e desabafei.

_ Que caramba... se pusesse o meu dedo dentro da sopa ele cozia num instante...

O que te riste... Sempre me espantei com a facilidade do teu riso, principalmente porque era muitas vezes inesperado. Surgia de coisinhas pequenas, como aquela que eu havia dito, sem intenção, só à laia de impaciência e desabafo, mas que tu transformavas em algo de belo, de engraçado, que me fazia feliz.

Enfim o dia chegou. Durante a manhã estendemos pela mata quilómetros de fio eléctrico, bem disfarçado, e pendurámos o gravador no cimo de uma árvore, em local estratégico, num dos pontos por onde as pessoas que entrassem na brincadeira da caça ao tesouro, forçosamente teriam de passar. Os mapas estavam perfeitamente bem desenhados e tinham levado um tratamento de envelhecimento, com fogo, tudo feito por ti que, ao contrário desta tua amiga, nunca te faltou jeito para essas coisas. Nesses mapas as pessoas encontrariam várias pistas e instruções que, bem descodificadas, as levaria ao tesouro e inevitavelmente às nossas ratoeiras.

Não esqueço a alegria com que recebemos os imensos convidados. Orgulhosas da nossa obra, fizemos as honras da casa e explicámos aos interessados – que foram muitos – as regras dos jogos imaginados. O entusiasmo era generalizado e aumentava à velocidade da nossa ansiedade. Nada poderia falhar. Tínhamos a certeza do sucesso do nosso empreendimento.

Enquanto as provas decorriam, fizemos por perder na corrida de sacos, passando a desclassificadas. Despercebidamente fugimos para casa. Num quarto, super satisfeitas e nervosas, vestimos as camisas de noite, colocámos as cabeleiras postiças, bastante despenteadas e com máscara de argila cobrimos por completo os rostos. Ajudei-te a ligar uma barra de sabão ao peito, sobre a qual colocaste um pano branco carregado de mercúrio e espetaste uma faca. Estávamos terríficas, verdadeiramente assustadoras. Pé ante pé, coladas às paredes e muros, espreitando por entre as nesgas de ramos, saimos e cautelosamente ligámos o gravador.

Corremos o mais que pudemos para uma zona ladeada de arvoredo, por onde forçosamente os concorrentes teriam de passar em busca do tesouro. Tu deitaste-te no chão fingindo que havias sido assassinada, eu escondi-me nos arbustos. A ideia era muito simples, quando fossem a passar veriam o teu corpo, sem o identificar claro. Se tivessem a coragem de parar eu sairia por detrás delas, arrastando uns HUUUUUUUSS... que, com a ajuda dos sons que tínhamos gravado, teriam um efeito aterrador.

Tudo teria corrido como o previsto não fossem os concorrentes ter imensa pressa em ganhar o jogo, por isso não se dignando parar. Mudança de planos. Tive de sair do meu local esbracejando, qual fantasma, emitindo os tais HUUUUUUUSS... e rodopiando por entre os convivas, num esforço infrutífero, de travar a sua marcha.

_ Que giro... isto tem cenas - diziam, fintando os nossos corpos.

Foi a gota de água. Eu andava de um lado ao outro tentando assustar alguém, sem o conseguir. Tu, deitada de costas, de faca espetada, rias às gargalhadas. O pessoal passava desviando-se airosamente quer de uma, quer de outra, rindo também. Quando olhei bem para ti, estavas com tamanho riso que o teu corpo mais parecia um pêndulo. Ora se levantava o tronco ora se levantavam as pernas, ambas baixando somente quando paravas para tomar fôlego. As nossas barrigas doíam de tanta gargalhada. Sentíamos a pele do rosto repuxada pela secagem da máscara de argila e só as lágrimas, produto desse riso desenfreado, nos davam conforto através dos sulcos que nela iam abrindo.

Desistimos! A única coisa que conseguimos foi assustar uma pobres criancinhas, filhas sei-lá-de-quem, que não gostaram nada do som que tínhamos gravado e que durante alguns dias deram uma trabalheira danada aos pais na hora da deita, não adormecendo facilmente.

A festa, no entanto, foi um sucesso. Alguns desses amigos eram músicos, fazendo a sua aparição com flautas e violas. Cantámos imenso, músicas que havíamos ensaiado na Loja de Vendagem, brincámos imenso, comemos e bebemos imenso... divertimo-nos imenso, todos nós.

Estafámo-nos alegremente. Mas valeu a pena. Foi o máximo!

A festa durou pela noite dentro. Foi mais uma daquelas noites mágicas que a serra de Sintra por vezes nos proporciona. Esta lembrança fica para a posteridade – como costumávamos dizer.

O Vizinho da Loja de Alcatifas

Tínhamos tanta sede de viver!

Ao lado da “nossa” loja havia uma outra de venda de alcatifas e produtos afins. O empregado era um rapaz que, aos nossos olhos, era bastante interessante. Não se justificava não o conhecermos, afinal éramos vizinhos. Estava decidido. Tínhamos urgência nesse conhecimento, mas como o faríamos? Ao fim de muitos dias de teatro, onde as realizadoras Teresa e Raquel praticaram sem resultado vários argumentos, tive uma inspiração. Essa inspiração foi lembrada durante anos e anos por ti, que teimavas sempre em contá-la nos nossos serões, em reunião com outros amigos, onde não faltavam o Pictionary, o Tabu e outros jogos.

O episódio foi muito simples e creio que fruto da necessidade de, mais uma vez, te espantar. Partiu de uma teimosia minha cujo prémio foi, como sempre, as tuas gargalhadas e como recompensa o meu contentamento.

Uma manhã, assegurei-te que falaríamos com o tal rapaz.

Decidida, peguei no telefone e pedi às informações, através da morada, o número da loja de alcatifas. Disse-te que seguisses os acontecimentos sem “dar bandeira”.

Marquei o número. O meu coração batia ao ritmo do teu, os dois ansiosos.

__ Estou!?...

Meu Deus... era ele... era ele... mesmo ele. As duas de orelhas coladas ao telefone, ouvíamos a sua voz.

__ Estou xim... – respondi eu, imitando o melhor que pude uma “voz de-lá-de-xima”, ainda por cima bastante esganiçada.

Tu tapavas a boca com a mão, numa vontade louca de rir. Eu... bem... de realizadora passava a actriz, uma actriz nervosa e também com muita vontade de rir.

__ O xenhor xeria capaz de chamar a menina Tereja? Ela eztá na loja de Bendagem, mas jeu... tenho muita urgênxia em falar cum ela, xó que num cunxigo...

Do outro lado o rapaz esforçou-se por perceber o que aquela mulher, que falava tão rápido e de forma tão aflita, com pronúncia de Viseu, pretendia. Finalmente, prontificou-se.

Apavoradas, mas sem o demonstrar, vimos o rapaz passar em frente da nossa vitrina e estacar bem na nossa porta. Tu não acreditavas no que vias e eu também não. Tínhamos conseguido. Ali estava ele a dirigir-se às duas. A figura recortava-se na claridade. Ele era uma autêntica aparição. De calças de ganga justa, bastante interessante. E a voz... a voz dirigia-se a nós... chegava até nós. Enquanto isso eu mantinha um monólogo ao telefone. Fingindo que não o via, nem tão pouco o ouvia. Desinteressada.

__ Teresa – interrompeste tu o meu monólogo tolo – Está alguém ao telefone na loja ao lado, para falar contigo.

Fingindo espanto, pedi ao ninguém que falava ao telefone comigo que aguardasse um instante e saí, acompanhada por... meu Deus, por ele. As minhas pernas tremiam de nervoso. Já na outra loja agarrei o telefone e falei contigo, colando o mais que pude o braço de telefone ao meu ouvido, com medo que ele se apercebesse das tuas gargalhadas.

__ O quê??? A menina está com febre?... Ó mulher leve-a ao médico, não perca tempo. – dizia eu.

Do outro lado tu continuavas a rir. Esse foi o meu melhor prémio. Tinha conseguido, mas mais do que isso, tu premiavas-me com as tuas excelentes gargalhadas fazendo-me sentir uma heroína.

Desliguei. Agradeci, sem justificações, e saí. Já longe da sua vista corri até ti, levando no rosto, bastante convencido, a marca da felicidade e da eterna glória.

As gargalhadas foram mais que muitas. Por vezes imagino se ele não terá desconfiado de algo. Mas... que interessa? Nesse e outros dias sempre que te lembravas rias. Era um riso que parecia surgir do nada, mas que me era dirigido, a mim, à importante Teresa. Que recompensa!

A partir daí foi fácil travar conhecimento com o nosso vizinho, que se nos revelou um lutador nato, numa vida complicada, com mais de um emprego. Gostávamos da sua simpatia, calma e seriedade. Respeitávamos os seus relatos, muitas vezes trocávamos livros de banda desenhada. Ele tinha a colecção do “Gaston la Gaffe” que trazia para nosso deleite.

Eternizaste esse jovem, hoje sem rosto, na minha lembrança.

A Loja de Vendagem


Um dia decidiste, com duas amigas tuas, abrir uma loja imaginada à maneira londrina, baseada na compra e venda de artigos usados, desde que em bom estado. Eu tinha acabado de ficar desempregada, por falência da sociedade onde trabalhava.

Convidaste-me a trabalhar convosco. Aceitei com o maior prazer e foi com esse prazer que nos divertimos à grande e à francesa.

De entre os artigos à venda havia alguns discos. Elegemos os Spandau Ballet, Fernando Girão e Lionel Richie para as nossas repetidas audições. Com as letras das canções em nosso poder cantávamos em uníssono, de forma sentida, que só tinha um fim abrupto aquando da entrada de algum cliente. A transformação era enorme e incrível. Bastava ficarmos de novo sós para retomarmos a cantoria e a dança com trejeitos teatrais, encarnando os personagens das canções.

Outras vezes, descia à cave procurava modelos que me servissem, colocava cabeleiras postiças, pintava-me e lá subia eu, para junto de ti. Tu rias, rias sempre. Nem a entrada de novas freguesas nos tirava a pose. Tu atendias-me a mim e a elas, sem te “desmanchares”. Colocava-te perguntas e interessava-me por um ou outro artigo, sobre o qual tecia os mais longos elogios, largando-o de seguida. Aprendêramos rapidamente que quem estivesse na loja se iria interessar, até mesmo comprar os tais artigos. De novo sós ríamos às bandeiras despregadas. Mascaradas ou não, utilizávamos esta técnica que se revelou quase infalível.

A fachada da loja era praticamente toda envidraçada. Eu, munida de balde, panos, jornais e produtos de limpeza, esticava-me toda para a limpar enquanto tu, sentada à secretária que fazia de balcão, rias. Rias porque os carros abrandavam a marcha enquanto os seus condutores olhavam a rapariga que, de mini-saia atrevida, inevitavelmente se balançava tentando chegar ao cimo de toda aquela vidraça, com o fim de a limpar. Claro que eu ao ver-te rir daquela maneira sabia que havia mirones e exagerava o bambolear, mostrando mais as pernas. Era um chamamento dizias tu, um dia o record de vendas seria inevitável.

__ A partir de hoje, sempre que for necessário limpar os vidros, vais de mini-saia – disseste, divertida.

__ OK. – assenti eu, não menos divertida.

Sentadas ao lado uma da outra escrevíamos histórias. Discutíamos teorias que considerávamos irrefutáveis, tecíamos considerações sobre as pessoas que passavam à frente da loja, só pelo ar que levavam. Acreditávamo-nos inteligentíssimas, talentos perdidos por ora, um dia... quem sabe?...

O dia-a-dia na “Loja de Vendagem” passava. Mais do que um emprego era uma autêntica diversão. Dia que não estivesses era dia para esquecer. Não tinha piada.

Naquela loja aparecia todo o tipo de pessoas.

A marquesa de “qualquer coisa”, que nada nos comprava, mas nos levava a “viajar” por entre gente nobre sua conhecida, através dos seus casuais relatos. Atentas ouvíamo-la como duas crianças, segurando o queixo entre as mãos. Ela, “a nobre”, passeava-se por entre as diversas roupas soltando um ou outro parecer agradável, enquanto repetidas vezes ajeitava com gestos elegantes a sua gola de raposa. Figura interessantemente decadente, cheia de pó-de-arroz e lápis de olhos. Por vezes pedia-nos para guardar esta ou aquela peça de roupa, que rapidamente colocávamos no devido local, assim que saía.

Outra personagem era uma menina que amiúde nos visitava. Criança suja, de piolhos e cheiro a sarro. Parecia saída de uma qualquer história inglesa, daquelas escritas por Charles Dickens. Olhos cor de azeitona, escuros, cheios de brilho e uma meiguice que desde logo nos cativou. Passou a ser a nossa pupila, não só nossa mas também de uma das tuas sócias. Compravas muitas vezes comida e alguns doces, presenteando-a. Aos poucos fomos sabendo tudo sobre a menina e a sua miserável vida.

Filha de uma mulher que mais tarde se nos apresentou na loja, vestida de casaco de peles até aos tornozelos, rosto bastante pintado, marcado pelo sofrimento e muita bebida. Contando algumas das suas desgraças, no meio de bafos carregados de vinho, que evitávamos a todo o custo, fomos sabendo... e sabendo... e sabendo.

Os seus relatos dançavam entre a vida que tivera com alguns homens, que sempre lhe haviam feito mal, o seu actual homem que lhe batia – mas que amava profundamente - e a filha a quem se via obrigada a bater - para a educar, já se vê.

Imaginámos a forma de tirar a menina daquele ambiente sórdido. Telefonámos para Instituições de Assistência Social, mas sem êxito. Tínhamos de ter provas dos maus tratos a que a criança estava sujeita para podermos apresentar queixa. Não era fácil, se bem que tivéssemos tentado.

Não sei o que terá sido feito daquela criança. Decerto terá seguido o caminho da mãe, ou da avó, que entretanto, qual ave de rapina se pavoneava mal e porcamente por entre as roupas e sapatos da loja. Estes últimos eram um constante alvo da criatura, que nos pedia para os guardar - “ad eternum”, se acreditássemos nas suas intenções. Passava assiduamente, perguntando pelos “seus” sapatos, assegurando-nos que ainda naquele dia os pagaria. Estes interesses surgiam no meio de queixas profundas contra a sua filha que... tanto bebia... era uma desgraçada. Escutávamos atentas, mas por entre os exuberantes trejeitos e dramas imaginávamos como é que ela, com aquela idade, conseguia ainda ganhar algum dinheiro.

Amiúde apareciam duas irmãs, que rondavam os trinta e muitos anos, parecidas apenas na educação, de resto, o físico, a forma de vestir, os gostos, tudo divergia. Certa manhã, enquanto uma procurava por entre os artigos expostos, algo de vestir, a outra junto de nós, remexia as bugigangas que, misturadas, se encontravam em um ou dois cestos por cima da secretária de atendimento.

A conversa trivialmente travada entre todas fluía, até que uma das vozes se deixou de ouvir. Sem razão aparente a cara da que remexia nas bugigangas tinha invadido um dos cestos. O nosso olhar cruzou-se, estupefacto. O corpo daquela manteve-se de pé, mas a cara, essa continuava perfeitamente encaixada no cesto. A figura tornou-se patética, mas quer eu quer tu pensámos que a senhora brincava, sem dúvida uma brincadeira estranha, mas quem éramos nós para avaliarmos? Desatámos a rir, um riso baixinho e nervoso, de quem adivinha algo de estranho, um riso apelativo que acabou por chamar a atenção da irmã que, prontamente, a retirou daquela pose esquisita e tratou de a reanimar. Afinal tinha perdido os sentidos e nós ali a pensarmos não sei o quê, sem saber se ríamos se... sei lá... se ríamos.

Uma outra personagem era uma pedinte já velhota que, em dias de chuva, entrava na loja e se instalava aguardando que esta acalmasse. Contava-nos a sua vida e nós bebíamos as suas palavras. Curiosamente nunca nos pediu esmola.

Toda aquela gente carregada de coisas para contar e nós tão dispostas a ouvir, ainda que impotentes ouvintes. Hoje vejo que também fizemos parte da história de todas elas e, de uma maneira ou de outra, fomos importantes nas suas vidas. Acarinhámos os seus corações com o nosso silêncio cortado por pequenas frases de alento, comiseração e coragem, cheias de um cúmplice e seguramente verdadeiro entendimento.

A todos

Aviso faço aos "leitores" apressados, sedentos de pouca leitura, que tal sorte não terão nos próximos escritos, por isso, "leitores" inquietos, nos próximos dias melhor será procurarem outras paragens que não esta.

Aqui reportarei algo que escrevi, após a morte de uma grande amiga.

Não espero comentários... este acto não pretende nem palmas nem críticas destrutivas, tem o peso que tem - o da amizade eterna, merece o respeito de cada ser humano, porque de dores e alegrias se escreve, num cantinho chamado blog, onde enriqueço os meus "pequenos mundos" ao tentar dar a conhecer uma grande alma que, algures num Céu grandioso, me olha com olhos traquinas e sorridentes, provocando em mim igual sorriso, cheio de carinho e gratidão por alguém tão especial que sempre viverá em mim.

Desculpa tu, amiga minha, se as minhas palavras não chegam para mostrar ao mundo a beleza que em ti existe.

12 janeiro 2006

Hum!!!!


Estou mais pequenina que os meus pequenos mundos. Sinto-me envergonhada, medrosa, desajustada, com sensações idênticas àquelas que cada ser humano sente quando acaba de "dar um fora" e deseja um buraquinho onde se esconder, ou quando conta uma piada que nem um sorriso amarelo despoleta e ao invés de se calar teima em esmiuçá-la, quando já ninguém ouve. Assim me encontro.

Cadê a veia artística? Estou anémica diante tantos escritos que leio. Pequenina, digo eu, quase inexistente, pior que insegura.

Tento pensar que nada me incomoda, que escrever é algo que faço porque me apetece, porque gosto, porque me transporta pelos pequenos mundos que tento descrever. Um círculo vicioso, um viajar desajeitado, feito de bilhetes baratos, mas aos quais me agarro com unhas e dentes e dos quais não me esqueço nem abdico, são meus.

Cheguei à altura em que percebo que me podem ler... os abutres, os mauzinhos, os ilustres conhecedores das técnicas do bem escrever (ai ai), os detentores do dom da palavra, os imaginativos... Ah pois... todos me podem ler. Agora é que é...

Se tal acontece, que resultará daqui? Não sei! Confesso que só dei conta desta situação hoje (dois dias após a criação do meu bloguinho), quando percebi que não sei se gosto que me leiam e, de olhos fechados, fiz rolar o cursor até aos comentários e, ansiosa, os abri (aos olhos) e... nada, nem um comentariozito. Foi nesse exacto momento que respirei aliviada e julgo ter deixado escapar um "Uf, que bom", para logo de seguida sentir uma triste dorzita e pensar "Uf, que chato, ninguém leu" ou, pior, muito pior " ninguém gostou, não vale nada para os outros!".

Claro está que me consolei... vale para mim e mais isto e mais aquilo e preu peu peu, etc., etc., mas... sinto-me gravemente apunhalada, estou ferida (e está um frio de rachar que em nada ajuda esta consolação), afinal quem se julgam eles??? Hum???

Tudo por causa dos Hemingways, dos Huxleys, para não falar dos desgraçados Kerouacs, que escrevem como quem se lambuza de chocolate, após uma boa pinga, ou snifadela, e que pegam nesta alma tão cheia de viagens deles, fazendo-a pensar que os entende, que se identifica, que poderia até ser um deles. Ah pois podia, podia sim senhor!

Depois lembrei-me das Ferros e das Pintos e todos os que escrevem por dá cá aquela palha e que não precisam de musa alguma. Escrevem sem medo, de peito aberto, sem se esgotarem (mesmo que plagiando ou repetindo-se). Estão lá!

Lá vou eu ter de me resumir e concluir: Isto é bem mais difícil de suportar que os papéis amarelecidos pelo tempo, que abundam pelas minhas coisas, por mim garatujados, dobrados ou amarrotados, os quais me surpreendem e teimo em guardar, testemunho de dores e alegrias, cheios de cor e cheiros, pobres de estilo, mas muito meus.

11 janeiro 2006

A Fechadura




Cheia de entusiasmo e vontade de trabalhar em casa, fui um dia destes comprar uma fechadura bonitinha para o meu escritório. A escolha não foi fácil, mas sentia-me orgulhosa da empreitada que ia cometer.

Tentei inseri-la na sua respectiva toca e… que diabo, era maior que a dita cuja. Uma porta tão pacientemente pintada por mim, naaa… isto não fica assim.

Empunhada de formão, grosa, martelo e de tudo o que pudesse abrir um roço maior na porta (facas normais, do pão, do queijo, etc), lá abri um buraco maior, ainda assim a maldita entrou muito à pressão, mesmo à cacetada. Não funcionava muito bem, mas... cumpria a sua missão - abria e fechava a porta. Ficou como estava.

Ao fim de dois meses, esbaforida, a fechadura deita a sua língua para fora ficando com esta pendurada, inactiva.

De armas em punho, retiro-a da toca, preparo-me para a cirurgia.

A língua salta sempre, perante o meu ar desolado.

Tiro parafusos, ponho parafusos… monto-a, desmonto-a... Sentada no chão e de olhar atento, espreito bem as suas entranhas, analiso, faço cálculos, rodopio-a, abro e fecho-a, desespero-me, e ela sempre a deitar a língua de fora. “Queres guerra??? Ok. Vamos nessa!”

De martelo em punho coloco a lingueta à cacetada, eis senão quando salta uma mola que por pouco não me atinge um olho. Não vou de modas e mando-lhe uma chapada.

Solto imprecações, suo, mas não desisto. Mola pela frente, mola por detrás e… nada.

Sento-me de novo, olho-a bem, faço novas experiências, troco-me toda… a maldita... nada, impávida e serena teima em não funcionar. “Ainda não desistiiii!” grito-lhe e grunho de dentes cerrados. Novas marteladas, novos aparafusamentos. De esferográfica a segurar a lingueta contra uma das minhas pernas, fechadura na mão esquerda, chave de fendas na mão direita, testa na porta, corpo todo torcido e em força empurro-a. É desta – penso. “Ah ah, CONSEGUI!!!!!” - gritei-lhe rejubilante.

Fecho então de forma airosa, diria mesmo vaidosamente inchada, de ar altivo, vitorioso, a dita porta. Fechou, sem gemer, sem protestar. “É assim mesmo” - penso para comigo. “O que está a dar é não desistir”. Abro a porta… tento abrir a porta… puxo o manípulo com força… dou cacetadas… nadaaaaaaaa. A estúpida emperrou, não abre. Primeiro pensamento: ir à janela do escritório e gritar por socorro. “Calma, calma… muita calma” - digo para mim, tentando respirar compassadamente.

“Em última instância tiro as dobradiças da porta desencaixo-a e tiro a maldita ”. Pensamento feito, mãos à obra… as dobradiças estão escondidas entre a porta e as aduelas. “SOCORROOOOOOO, quero a minha mãe, meus irmãos, toda a gente”.

Sento-me de novo no chão, saco de um cigarro, fumo e penso.

Mais calma, munida de martelo e pano do pó, para não magoar a porta, dou-lhe tamanha martelada que a desgraçada não teve outro remédio que saltar, abrindo-se a porta. Espreito… e lá está a maldita de novo com a língua de fora. “Uf, safei-me de boa”.

Desmancho-a de novo, mais cálculos, mais aparafusadelas, parafusos tirados, molas a saltar e a sobrar (mas acho que não fazem lá falta alguma), monto-a de novo. Está perra. De bala em riste besunto-a todinha. Já responde. “Fixe, desta vez é que consegui. Deveria ser falta de óleo” - penso. Monto-a, sai de língua pronta, a desgraçada a gozar comigo. Tiro-a, dou-lhe nova chapada e mando-a para o lixo.
Cansei, vou comprar outra.

10 janeiro 2006

A Um Astor Piazzolla


O público de imediato se cala, espantado com a entrada daquela figura pintada que, num frenesim estonteante, corre de um lado para o outro. O acordeão faz-se ouvir, imperativo, por toda a sala, arrepiando até os menos sensíveis. Atento, o piano segue-o.

As luzes dos projectores caem sobre os passos saltitantes do palhaço, numa sincronia quase impossível. O resto do palco mantém-se escuro, assustador.

Os saltos patéticos, acompanhados por movimentos rápidos de todo o corpo do dançarino, criam uma atmosfera constrangedora.

O inquieto acordeão solicita ajuda, tornando mais lento o seu andamento e o som do violino nasce... devagarinho, triste, quase solitário e, num crescendo, se transforma em choro inconsolável. Cada um para o seu lado, grita e cala e tenta fazer-se ouvir sem escutar. Ao longe o olhar quase invisível do piano segue os dois amigos, tentando juntá-los.

As piruetas do palhaço dão lugar ao arrastar pelo palco. Pelo lívido rosto, as lágrimas negras escorrem até ao limiar dos lábios vermelhos que formam, em esgar, a boca enorme.

O som transporta uma falsa paz, esvazia perturbadas almas, dá lugar à exaltação, ao choro, à raiva, à zanga, à revolta, poucas vezes à alegria. O palhaço cai e levanta-se, salta e fica quieto, ergue as mãos vestidas de brancas luvas e, em prece sonhada, blasfema, aconchega o peito e rasga as vestes sob as quais se vê o bater de um grande coração.

A revisão inconsciente que cada um faz de si cria um nó nas gargantas. Respira-se mal, a medo, com sofrimento em cada nota ouvida, há quem, sem conseguir evitar, chore sem saber porquê.

A discussão surge e o palhaço não sabe para onde se vire, para onde corra, amiúde abate o corpo mole, sem peso, no chão escuro do palco.

O acordeão chora mansinho e ri exaltado, louco, tenta explicar o que não tem explicação. O violino, por fim, ouve o desespero nas lamúrias do seu amado, quer animá-lo, implorando-lhe uma esperança que não sente em si, acaba por desistir e abandona-o, sem forças. Ao longe, qual sombra, o piano assiste impotente ao desencontro, sem ser visto, chora em silêncio, cobardemente.

Numa viragem desconcertante o acordeão renasce, o palhaço finge secar as falsas lágrimas. Ambos exultam, altivos e, de costas para as gentes, seguem por um longo caminho feito de nada.

O público vê-os afastar-se e, estático, segue com eles.