Páginas

16 janeiro 2006

A Loja de Vendagem


Um dia decidiste, com duas amigas tuas, abrir uma loja imaginada à maneira londrina, baseada na compra e venda de artigos usados, desde que em bom estado. Eu tinha acabado de ficar desempregada, por falência da sociedade onde trabalhava.

Convidaste-me a trabalhar convosco. Aceitei com o maior prazer e foi com esse prazer que nos divertimos à grande e à francesa.

De entre os artigos à venda havia alguns discos. Elegemos os Spandau Ballet, Fernando Girão e Lionel Richie para as nossas repetidas audições. Com as letras das canções em nosso poder cantávamos em uníssono, de forma sentida, que só tinha um fim abrupto aquando da entrada de algum cliente. A transformação era enorme e incrível. Bastava ficarmos de novo sós para retomarmos a cantoria e a dança com trejeitos teatrais, encarnando os personagens das canções.

Outras vezes, descia à cave procurava modelos que me servissem, colocava cabeleiras postiças, pintava-me e lá subia eu, para junto de ti. Tu rias, rias sempre. Nem a entrada de novas freguesas nos tirava a pose. Tu atendias-me a mim e a elas, sem te “desmanchares”. Colocava-te perguntas e interessava-me por um ou outro artigo, sobre o qual tecia os mais longos elogios, largando-o de seguida. Aprendêramos rapidamente que quem estivesse na loja se iria interessar, até mesmo comprar os tais artigos. De novo sós ríamos às bandeiras despregadas. Mascaradas ou não, utilizávamos esta técnica que se revelou quase infalível.

A fachada da loja era praticamente toda envidraçada. Eu, munida de balde, panos, jornais e produtos de limpeza, esticava-me toda para a limpar enquanto tu, sentada à secretária que fazia de balcão, rias. Rias porque os carros abrandavam a marcha enquanto os seus condutores olhavam a rapariga que, de mini-saia atrevida, inevitavelmente se balançava tentando chegar ao cimo de toda aquela vidraça, com o fim de a limpar. Claro que eu ao ver-te rir daquela maneira sabia que havia mirones e exagerava o bambolear, mostrando mais as pernas. Era um chamamento dizias tu, um dia o record de vendas seria inevitável.

__ A partir de hoje, sempre que for necessário limpar os vidros, vais de mini-saia – disseste, divertida.

__ OK. – assenti eu, não menos divertida.

Sentadas ao lado uma da outra escrevíamos histórias. Discutíamos teorias que considerávamos irrefutáveis, tecíamos considerações sobre as pessoas que passavam à frente da loja, só pelo ar que levavam. Acreditávamo-nos inteligentíssimas, talentos perdidos por ora, um dia... quem sabe?...

O dia-a-dia na “Loja de Vendagem” passava. Mais do que um emprego era uma autêntica diversão. Dia que não estivesses era dia para esquecer. Não tinha piada.

Naquela loja aparecia todo o tipo de pessoas.

A marquesa de “qualquer coisa”, que nada nos comprava, mas nos levava a “viajar” por entre gente nobre sua conhecida, através dos seus casuais relatos. Atentas ouvíamo-la como duas crianças, segurando o queixo entre as mãos. Ela, “a nobre”, passeava-se por entre as diversas roupas soltando um ou outro parecer agradável, enquanto repetidas vezes ajeitava com gestos elegantes a sua gola de raposa. Figura interessantemente decadente, cheia de pó-de-arroz e lápis de olhos. Por vezes pedia-nos para guardar esta ou aquela peça de roupa, que rapidamente colocávamos no devido local, assim que saía.

Outra personagem era uma menina que amiúde nos visitava. Criança suja, de piolhos e cheiro a sarro. Parecia saída de uma qualquer história inglesa, daquelas escritas por Charles Dickens. Olhos cor de azeitona, escuros, cheios de brilho e uma meiguice que desde logo nos cativou. Passou a ser a nossa pupila, não só nossa mas também de uma das tuas sócias. Compravas muitas vezes comida e alguns doces, presenteando-a. Aos poucos fomos sabendo tudo sobre a menina e a sua miserável vida.

Filha de uma mulher que mais tarde se nos apresentou na loja, vestida de casaco de peles até aos tornozelos, rosto bastante pintado, marcado pelo sofrimento e muita bebida. Contando algumas das suas desgraças, no meio de bafos carregados de vinho, que evitávamos a todo o custo, fomos sabendo... e sabendo... e sabendo.

Os seus relatos dançavam entre a vida que tivera com alguns homens, que sempre lhe haviam feito mal, o seu actual homem que lhe batia – mas que amava profundamente - e a filha a quem se via obrigada a bater - para a educar, já se vê.

Imaginámos a forma de tirar a menina daquele ambiente sórdido. Telefonámos para Instituições de Assistência Social, mas sem êxito. Tínhamos de ter provas dos maus tratos a que a criança estava sujeita para podermos apresentar queixa. Não era fácil, se bem que tivéssemos tentado.

Não sei o que terá sido feito daquela criança. Decerto terá seguido o caminho da mãe, ou da avó, que entretanto, qual ave de rapina se pavoneava mal e porcamente por entre as roupas e sapatos da loja. Estes últimos eram um constante alvo da criatura, que nos pedia para os guardar - “ad eternum”, se acreditássemos nas suas intenções. Passava assiduamente, perguntando pelos “seus” sapatos, assegurando-nos que ainda naquele dia os pagaria. Estes interesses surgiam no meio de queixas profundas contra a sua filha que... tanto bebia... era uma desgraçada. Escutávamos atentas, mas por entre os exuberantes trejeitos e dramas imaginávamos como é que ela, com aquela idade, conseguia ainda ganhar algum dinheiro.

Amiúde apareciam duas irmãs, que rondavam os trinta e muitos anos, parecidas apenas na educação, de resto, o físico, a forma de vestir, os gostos, tudo divergia. Certa manhã, enquanto uma procurava por entre os artigos expostos, algo de vestir, a outra junto de nós, remexia as bugigangas que, misturadas, se encontravam em um ou dois cestos por cima da secretária de atendimento.

A conversa trivialmente travada entre todas fluía, até que uma das vozes se deixou de ouvir. Sem razão aparente a cara da que remexia nas bugigangas tinha invadido um dos cestos. O nosso olhar cruzou-se, estupefacto. O corpo daquela manteve-se de pé, mas a cara, essa continuava perfeitamente encaixada no cesto. A figura tornou-se patética, mas quer eu quer tu pensámos que a senhora brincava, sem dúvida uma brincadeira estranha, mas quem éramos nós para avaliarmos? Desatámos a rir, um riso baixinho e nervoso, de quem adivinha algo de estranho, um riso apelativo que acabou por chamar a atenção da irmã que, prontamente, a retirou daquela pose esquisita e tratou de a reanimar. Afinal tinha perdido os sentidos e nós ali a pensarmos não sei o quê, sem saber se ríamos se... sei lá... se ríamos.

Uma outra personagem era uma pedinte já velhota que, em dias de chuva, entrava na loja e se instalava aguardando que esta acalmasse. Contava-nos a sua vida e nós bebíamos as suas palavras. Curiosamente nunca nos pediu esmola.

Toda aquela gente carregada de coisas para contar e nós tão dispostas a ouvir, ainda que impotentes ouvintes. Hoje vejo que também fizemos parte da história de todas elas e, de uma maneira ou de outra, fomos importantes nas suas vidas. Acarinhámos os seus corações com o nosso silêncio cortado por pequenas frases de alento, comiseração e coragem, cheias de um cúmplice e seguramente verdadeiro entendimento.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostava de saber escrever assim.

E, a propósito...

So true
Funny how it seems
Always in time, but never in line for dreams
Head over heels,when toe to toe
This is the sound of my soul
This is the sound
I bought a ticket to the world
But now Ive come back again
Why do I find it hard to write the next line
When I want the truth to be said
I know this much is true
With a thrill in my head an a pill on my tongue
Dissolve the nerves that have just begun
Listening to marvin all night long
This is the sound of my soul
This is the sound
Always slipping from my hands
Sands a time of ts own
Take your seaside arms and write the next line
Oh I want the truth to be known