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16 janeiro 2006

Vêm aí os Nossos Anos


Eis que eles aí vêm, os nossos anos. Os primeiros a passarmos juntas. Lembras-te? Tu fazes anos a 14 de Junho, eu a 28 do mesmo mês, decidimos festejar os anos a 21. Claro que foi ideia tua e que bela ideia.

Festejámos no mesmo dia, em Sintra na casa que outrora havia pertencido ao teu pai. Senti-me pequenina nesse local. Esse acontecimento foi mais que uma prenda inesperada para mim. Não tinha posses para fazer uma festa como a que realizámos, mas sobretudo jamais havia me divertido tanto para os preparativos de um aniversário meu, como desta vez o fiz... como acabámos por fazer ambas.

Pensámos em tudo até ao ínfimo pormenor. Nos comes e bebes, nos jogos, nas surpresas... Levámos para a Loja de Vendagem um gravador. Tentámos ser o mais realistas possíveis na imitação de sons sobrenaturais, guinchos de animais e sei lá mais o quê. Tudo o que parecesse ao ser humano assustador e arrepiante. Na cave da loja, sempre que podíamos gravávamos esses sons. Eu guinchava, tu imitavas uivos de lobos, enquanto arrastávamos correntes e hastes de flores e folhas plásticas. De vez em quando um grito estridente cortava o ar. A certa altura dei um pontapé num balde de latão que virou, espalhando água suja de limpar o chão, não sem antes nos salpicar da mesma. Gargalhada geral, até às lágrimas e, claro, nova gravação. Finalmente, a fita continha um registo, no nosso entender, verdadeiramente assustador.

De entre os espécimens à venda na loja, tomámos de emprestado umas cabeleiras longas e umas camisas de dormir. Enquanto os clientes não chegavam – e quem dera que não chegassem – redigimos regras de jogos, entre os quais o da corrida de sacos e a busca ao tesouro. Seria neste último que assustaríamos o pessoal.

Resolvemos ficar em Sintra de véspera, para termos tempo de preparar tudo. Mais uma vez, de trouxas e bagagens, sacos, saquinhos e sacões, lá fomos em direcção à lindeza de serra, portento de Sintra.

Tudo o que estávamos a preparar tinha o gosto do irreal, de tal forma que, de carro e ânimos a abarrotar, já no meio da mata, em plena subida, nos pregámos um susto inesquecível. Desligaste as luzes do carro, enquanto falavas na hipótese do aparecimento de lobos e lobisomens e... eu alinhei. O carro seguia muito devagar porque à nossa frente o caminho não se percebia. De repente, no meio daquele nervoso miudinho desatámos aos gritos, trancámos as portas, ligaste as luzes e... rodas para que vos quero. Só parámos à porta de casa, cheias de medo, e de pressa em o descarregar.

Já dentro de casa, trancas à porta e adrenalina a descer muito lentamente, nervosas rimos, mas... decididamente desta vez não achámos muita piada. Foi uma experiência para esquecer e, sobretudo, não repetir.

A atmosfera da casa deixou-me deveras agradada. Na altura esta não tinha sido sujeita a obras. Lembro-me que tinha uma lareira espectacular que teimosamente mantivemos acesa e nos dava um clima acolhedor, quentinho. Com fraca luminosidade, a sala e cozinha irradiavam uma auréola cor de laranja, transmitida pelo fogo da lareira.

A ideia era fazer doces, salgados, sopas... Lembras-te daquele teimoso caldo verde que nunca mais cozia? Pois é... aquele maldito panelão de sopa sobre o qual tinha de me pôr em bicos de pés para mexer os fios de hortaliça que abundavam aos milhões, num nunca mais acabar de verde. Horas e horas e horas e a sopa não cozia. Eu, desde sempre a mais ansiosa, não consegui aguentar a espera e desabafei.

_ Que caramba... se pusesse o meu dedo dentro da sopa ele cozia num instante...

O que te riste... Sempre me espantei com a facilidade do teu riso, principalmente porque era muitas vezes inesperado. Surgia de coisinhas pequenas, como aquela que eu havia dito, sem intenção, só à laia de impaciência e desabafo, mas que tu transformavas em algo de belo, de engraçado, que me fazia feliz.

Enfim o dia chegou. Durante a manhã estendemos pela mata quilómetros de fio eléctrico, bem disfarçado, e pendurámos o gravador no cimo de uma árvore, em local estratégico, num dos pontos por onde as pessoas que entrassem na brincadeira da caça ao tesouro, forçosamente teriam de passar. Os mapas estavam perfeitamente bem desenhados e tinham levado um tratamento de envelhecimento, com fogo, tudo feito por ti que, ao contrário desta tua amiga, nunca te faltou jeito para essas coisas. Nesses mapas as pessoas encontrariam várias pistas e instruções que, bem descodificadas, as levaria ao tesouro e inevitavelmente às nossas ratoeiras.

Não esqueço a alegria com que recebemos os imensos convidados. Orgulhosas da nossa obra, fizemos as honras da casa e explicámos aos interessados – que foram muitos – as regras dos jogos imaginados. O entusiasmo era generalizado e aumentava à velocidade da nossa ansiedade. Nada poderia falhar. Tínhamos a certeza do sucesso do nosso empreendimento.

Enquanto as provas decorriam, fizemos por perder na corrida de sacos, passando a desclassificadas. Despercebidamente fugimos para casa. Num quarto, super satisfeitas e nervosas, vestimos as camisas de noite, colocámos as cabeleiras postiças, bastante despenteadas e com máscara de argila cobrimos por completo os rostos. Ajudei-te a ligar uma barra de sabão ao peito, sobre a qual colocaste um pano branco carregado de mercúrio e espetaste uma faca. Estávamos terríficas, verdadeiramente assustadoras. Pé ante pé, coladas às paredes e muros, espreitando por entre as nesgas de ramos, saimos e cautelosamente ligámos o gravador.

Corremos o mais que pudemos para uma zona ladeada de arvoredo, por onde forçosamente os concorrentes teriam de passar em busca do tesouro. Tu deitaste-te no chão fingindo que havias sido assassinada, eu escondi-me nos arbustos. A ideia era muito simples, quando fossem a passar veriam o teu corpo, sem o identificar claro. Se tivessem a coragem de parar eu sairia por detrás delas, arrastando uns HUUUUUUUSS... que, com a ajuda dos sons que tínhamos gravado, teriam um efeito aterrador.

Tudo teria corrido como o previsto não fossem os concorrentes ter imensa pressa em ganhar o jogo, por isso não se dignando parar. Mudança de planos. Tive de sair do meu local esbracejando, qual fantasma, emitindo os tais HUUUUUUUSS... e rodopiando por entre os convivas, num esforço infrutífero, de travar a sua marcha.

_ Que giro... isto tem cenas - diziam, fintando os nossos corpos.

Foi a gota de água. Eu andava de um lado ao outro tentando assustar alguém, sem o conseguir. Tu, deitada de costas, de faca espetada, rias às gargalhadas. O pessoal passava desviando-se airosamente quer de uma, quer de outra, rindo também. Quando olhei bem para ti, estavas com tamanho riso que o teu corpo mais parecia um pêndulo. Ora se levantava o tronco ora se levantavam as pernas, ambas baixando somente quando paravas para tomar fôlego. As nossas barrigas doíam de tanta gargalhada. Sentíamos a pele do rosto repuxada pela secagem da máscara de argila e só as lágrimas, produto desse riso desenfreado, nos davam conforto através dos sulcos que nela iam abrindo.

Desistimos! A única coisa que conseguimos foi assustar uma pobres criancinhas, filhas sei-lá-de-quem, que não gostaram nada do som que tínhamos gravado e que durante alguns dias deram uma trabalheira danada aos pais na hora da deita, não adormecendo facilmente.

A festa, no entanto, foi um sucesso. Alguns desses amigos eram músicos, fazendo a sua aparição com flautas e violas. Cantámos imenso, músicas que havíamos ensaiado na Loja de Vendagem, brincámos imenso, comemos e bebemos imenso... divertimo-nos imenso, todos nós.

Estafámo-nos alegremente. Mas valeu a pena. Foi o máximo!

A festa durou pela noite dentro. Foi mais uma daquelas noites mágicas que a serra de Sintra por vezes nos proporciona. Esta lembrança fica para a posteridade – como costumávamos dizer.

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