O público de imediato se cala, espantado com a entrada daquela figura pintada que, num frenesim estonteante, corre de um lado para o outro. O acordeão faz-se ouvir, imperativo, por toda a sala, arrepiando até os menos sensíveis. Atento, o piano segue-o.
As luzes dos projectores caem sobre os passos saltitantes do palhaço, numa sincronia quase impossível. O resto do palco mantém-se escuro, assustador.
Os saltos patéticos, acompanhados por movimentos rápidos de todo o corpo do dançarino, criam uma atmosfera constrangedora.
O inquieto acordeão solicita ajuda, tornando mais lento o seu andamento e o som do violino nasce... devagarinho, triste, quase solitário e, num crescendo, se transforma em choro inconsolável. Cada um para o seu lado, grita e cala e tenta fazer-se ouvir sem escutar. Ao longe o olhar quase invisível do piano segue os dois amigos, tentando juntá-los.
As piruetas do palhaço dão lugar ao arrastar pelo palco. Pelo lívido rosto, as lágrimas negras escorrem até ao limiar dos lábios vermelhos que formam, em esgar, a boca enorme.
O som transporta uma falsa paz, esvazia perturbadas almas, dá lugar à exaltação, ao choro, à raiva, à zanga, à revolta, poucas vezes à alegria. O palhaço cai e levanta-se, salta e fica quieto, ergue as mãos vestidas de brancas luvas e, em prece sonhada, blasfema, aconchega o peito e rasga as vestes sob as quais se vê o bater de um grande coração.
A revisão inconsciente que cada um faz de si cria um nó nas gargantas. Respira-se mal, a medo, com sofrimento em cada nota ouvida, há quem, sem conseguir evitar, chore sem saber porquê.
A discussão surge e o palhaço não sabe para onde se vire, para onde corra, amiúde abate o corpo mole, sem peso, no chão escuro do palco.
O acordeão chora mansinho e ri exaltado, louco, tenta explicar o que não tem explicação. O violino, por fim, ouve o desespero nas lamúrias do seu amado, quer animá-lo, implorando-lhe uma esperança que não sente em si, acaba por desistir e abandona-o, sem forças. Ao longe, qual sombra, o piano assiste impotente ao desencontro, sem ser visto, chora em silêncio, cobardemente.
Numa viragem desconcertante o acordeão renasce, o palhaço finge secar as falsas lágrimas. Ambos exultam, altivos e, de costas para as gentes, seguem por um longo caminho feito de nada.
O público vê-os afastar-se e, estático, segue com eles.
4 comentários:
Senti-me como que sentado na quarta fila.
Gostei...chorei...um dia voltarei...adorei Piazzolla
BOA, MIÚDA.
estou orgulhosa de gostar de ti. Não páres de me surpreender.
Deste-me vontade de tocar o meu acordeão. E foi o que fiz... Acabei de o arrumar. Agora, vou escrever, porque também me provocaste vontade. Antes de me deitar, voltarei a ler o teu texto, porque tenho vontade... Parabéns!
Astor Piazzolla não é uma novidade para mim... O "resto" é que me deixou estarrecido.... Muito, muito bom... E já vi aquele palhaço, não? ;-)
Adão
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