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10 janeiro 2006

A Um Astor Piazzolla


O público de imediato se cala, espantado com a entrada daquela figura pintada que, num frenesim estonteante, corre de um lado para o outro. O acordeão faz-se ouvir, imperativo, por toda a sala, arrepiando até os menos sensíveis. Atento, o piano segue-o.

As luzes dos projectores caem sobre os passos saltitantes do palhaço, numa sincronia quase impossível. O resto do palco mantém-se escuro, assustador.

Os saltos patéticos, acompanhados por movimentos rápidos de todo o corpo do dançarino, criam uma atmosfera constrangedora.

O inquieto acordeão solicita ajuda, tornando mais lento o seu andamento e o som do violino nasce... devagarinho, triste, quase solitário e, num crescendo, se transforma em choro inconsolável. Cada um para o seu lado, grita e cala e tenta fazer-se ouvir sem escutar. Ao longe o olhar quase invisível do piano segue os dois amigos, tentando juntá-los.

As piruetas do palhaço dão lugar ao arrastar pelo palco. Pelo lívido rosto, as lágrimas negras escorrem até ao limiar dos lábios vermelhos que formam, em esgar, a boca enorme.

O som transporta uma falsa paz, esvazia perturbadas almas, dá lugar à exaltação, ao choro, à raiva, à zanga, à revolta, poucas vezes à alegria. O palhaço cai e levanta-se, salta e fica quieto, ergue as mãos vestidas de brancas luvas e, em prece sonhada, blasfema, aconchega o peito e rasga as vestes sob as quais se vê o bater de um grande coração.

A revisão inconsciente que cada um faz de si cria um nó nas gargantas. Respira-se mal, a medo, com sofrimento em cada nota ouvida, há quem, sem conseguir evitar, chore sem saber porquê.

A discussão surge e o palhaço não sabe para onde se vire, para onde corra, amiúde abate o corpo mole, sem peso, no chão escuro do palco.

O acordeão chora mansinho e ri exaltado, louco, tenta explicar o que não tem explicação. O violino, por fim, ouve o desespero nas lamúrias do seu amado, quer animá-lo, implorando-lhe uma esperança que não sente em si, acaba por desistir e abandona-o, sem forças. Ao longe, qual sombra, o piano assiste impotente ao desencontro, sem ser visto, chora em silêncio, cobardemente.

Numa viragem desconcertante o acordeão renasce, o palhaço finge secar as falsas lágrimas. Ambos exultam, altivos e, de costas para as gentes, seguem por um longo caminho feito de nada.

O público vê-os afastar-se e, estático, segue com eles.


4 comentários:

Anónimo disse...

Senti-me como que sentado na quarta fila.
Gostei...chorei...um dia voltarei...adorei Piazzolla

Anónimo disse...

BOA, MIÚDA.

estou orgulhosa de gostar de ti. Não páres de me surpreender.

joao rafael ventura ferreira disse...

Deste-me vontade de tocar o meu acordeão. E foi o que fiz... Acabei de o arrumar. Agora, vou escrever, porque também me provocaste vontade. Antes de me deitar, voltarei a ler o teu texto, porque tenho vontade... Parabéns!

Anónimo disse...

Astor Piazzolla não é uma novidade para mim... O "resto" é que me deixou estarrecido.... Muito, muito bom... E já vi aquele palhaço, não? ;-)

Adão