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26 janeiro 2006

A Culpa foi do “Metro”



Mais um dia de trabalho e a usual correria para os transportes que me devolve ao “lar doce lar”. Saio a porta da minha “prisão” e quase desemboco na gare do Metropolitano, que me levará a uma estação dos caminhos-de-ferro, onde apanho o comboio até à minha zona de residência. Aí, poucos passos mais e entro no meu fiel popó, caso a polícia não o tenha retirado, numa manifestação de zelo, bem se vê.

Hoje o “Metro” resolveu não aparecer, assim, sem mais nem menos, sem explicações, sem motivo aparente, apenas não veio, mais nada. E de criticado transporte passou a desejado, mas mesmo assim não veio.

Na companhia de duas colegas, atravessei a majestosa Avenida, sem respeitar passadeiras ou sinais, fintando carros e motas, autocarros e outras incautas pessoas.

Na mira fixei qualquer autocarro que me despejasse na estação de comboios. Não me senti aborrecida, mas a viver uma pequenina aventura – ao que cheguei... andar de autocarro, olhar o trajecto por cima do asfalto, sentir a noite chegar pelas luzes, cada vez mais vivas, dos candeeiros, enfim sair dos meus hábitos de toupeira, a tudo isso chamo “uma pequenina aventura”... ai ai.

A pequena ondulante lagarta mostrou na sua cauda alguns lugares disponíveis, sorte a nossa que juntas poderíamos ir na converseta. Saltitantes, para lá nos dirigimos. Sentei-me bem na frente de alguém, cara com cara, enquanto as minhas duas colegas se sentaram, uma ao meu lado e a outra ao lado desse alguém. À nossa volta um cheiro a mosto transmitiu-nos um inesperado enjoo. Olhei atentamente a pessoa à minha frente. De corpo disforme, blusa de malha esburacada, em tons de vinho, saia indescritível, uma mulher abraçava uma mala preta de senhora. As mãos apresentavam unhas sujas. O cabelo quase liso, cheio de óleo, dava-lhe pelos ombros e estava seguro por uma bandolete dentada que deixava escapar para a testa uma pegajosa franja. O rosto comprido, de tez acastanhada, carregava um nariz comprido sob o qual se desenhavam dois olhos pequenos, ainda vivos, em baixo, a boca ligeiramente enrugada, de lábios finos, quase sem cor, por onde uns dentes pequenos e escuros faziam a sua aparição. O cheiro vinha dali, daquela mulher, que atentamente nos olhava.

Cuidadosamente e sem pressas, fazia surgir da mala as alças de um qualquer saco de supermercado que entreabria, para logo de seguida, elevar a mala à altura da boca, colocando uma das mãos por debaixo desta e a outra por dentro do saco de plástico.

Desviei o olhar, incrédula. Ouvi o som da deglutição e vi o pousar cuidado da mala sob os joelhos tapados. Curiosa, levantei o olhar e cruzei-o com o seu.

- Está calor! – afirmou. Enquanto escondia o saco plástico, e me mostrava um largo sorriso.

- Sem dúvida! – reforcei, com alguma malícia.

Percebi os risos à nossa volta.

Iniciei a leitura de uma revista comprada nessa manhã.

- Revista cara... – disse a mulher – bonitaaaaaaa... mas cara!

- É! – assenti eu – fala de lugares bonitos.

- Ah pois!, muito bonitos... e caros...

Sorri-lhe, enquanto a vi levantar de novo a mala e com esta o saco de plástico que escondia a garrafa da bebida. Mais uns golitos, seguidos de uma limpeza dos cantos da boca, com a palma da mão esquerda.

Os risos, cada vez mais audíveis, fizeram-me virar a cabeça para os utentes daquele transporte. Alguns, não ligando ao frio que vinha do exterior, escancararam o mais que puderam as janelas do autocarro, outros, taparam o nariz com as mãos e lenços de papel, eu (que sou humana, e por vezes me armo em parva) retirei um creme da minha mala – daqueles cremes caros e perfumados – e espalhei pelas mãos, dando de seguida a embalagem às minhas colegas que, rindo, me imitaram agradecidas.

De seguida tornei o olhar para aquela mulher que, parecendo não perceber o que se passava ao seu redor, continuava a beber recatadamente o líquido causador de tal movimentação.

Falou do tempo, sempre de sorriso pronto, falou dos seus tempos de escola, da letra bonita que tinha, de Salazar, da defesa de uma qualidade de vida que não tinha... das saudades da sua meninice, e fê-lo sem lamentos, sem largar o sorriso tingido de bebida. Dei por mim a mostrar-lhe os sítios lindos, a comentar os locais, a ouvi-la mais atentamente.

Captou a minha atenção e a dos que nos rodeavam e aos poucos, com desconforto, senti-me mais próxima dela que deles. A tristeza apoderou-se de mim, tanto quanto a cobardia. O que passei a sentir agoniou-me mais que o cheiro desagradável da bebida.

Aquela mulher conseguira, na sua desgraça, unir pessoas que jamais se falariam, uniu-nos pelo sarcasmo, pelo cinismo, pela oportunidade de nos sentirmos maiores na sua suposta pequenez, assim, sem dó nem piedade. Deu o motivo, que tão prontamente aproveitámos, para um gratuito gozo, sem defesas, alheadamente.

Na sua inocência, manteve o decoro que nos faltou, mostrou a educação que não tivemos, o respeito pelo próximo que esquecemos e, pelo menos em mim, deixou a dor do desabafo simples, num único pedido...

- Posso ver a letra da revista? É tão linda...

Dei-lha, não por dó, não como esmola... ela merece-a mais que eu.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bonito...no seu melhor...na comtemplação, na observação, na sensibilidade ainda que por fugaz momentos de uma viagem... transmitiu-nos através da sua pena (escrita) o quanto existe de pior...a hipocrisia social.