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03 fevereiro 2006

Sempre a Música




O simples impacto das golfadas de húmido ar nas faces desvanecia o cansaço daquele corpo cansado. Os passos leves e apressados transmitiam-lhe a graciosidade de uma dança, o que a fez parar com medo que tal estivesse a acontecer, algo nada impossível, já que a música que escutava através do seu inseparável aparelhinho de mp3 a poderia induzir a bambolear-se, provocando uma situação constrangedora, por entre as gentes que por ela passavam. Gostaria de ser invisível, ou que as outras pessoas parassem no tempo e no espaço, possibilitando-lhe dançar, seguindo alegremente o seu caminho, assim como certos anúncios de televisão em que, de um momento para o outro, todos ficam estáticos, e apenas uma pessoa prossegue, graciosa, por entre todos, com ar leve e dançante.

Teria de se contentar com os céleres e misturados pensamentos e pelas lembranças desgarradas. As poças de água, fruto da recente noite chuvosa, vinham mesmo a calhar, permitindo-lhe saltar. Pulo aqui e ali, de corpo projectado para a frente ou ligeiramente de lado... vontade, vontadinha era a de rodopiar, mas seria demais, ok, contentava-se com os pulinhos.

A vida não tinha sido fácil para ela, mas ia-se resolvendo e sentia que valia a pena viver, ainda que não soubesse se era feliz. Felicidade... quantas vezes pensou nesse sentimento difícil de entender, de definir. Felicidade... para ela, era também isolar-se de tudo e de todos e sentir o que sentia naquele exacto momento, ao ouvir a sua música, ao caminhar pulando poças de água, se bem que o guarda chuva a incomodasse, a mala a tiracolo, que teimava em descair, lhe travasse os movimentos, emprestando uma postura desnivelada ao corpo, e o saco, aquele maldito saco de papel, carregado de códigos massudos, ameaçasse abrir-se, fazendo-a tropeçar.

Sabia ser desajeitada, mas à sua maneira era airosa, pelo menos assim se julgava.

As botas de camurça castanha sob as pernas das calças pretas, o blusão castanho de imitada pele, puído, de que tanto gostava, faziam-na segura de si, sentir-se bem na sua própria pele.

Como a vida pode ser bonita por entre cinzentos tons molhados.

Atravessou as rua de forma caótica, sem respeito pelas regras, por entre autocarros apinhados e carros apressados. Viu a sua minúscula figura recortar-se velozmente nos edifícios altos da cidade, alguns de pintura decadente, outros de azulejos coloridos, outros espelhados. Recusava olhar para os espelhos das fachadas por medo de quebrar a imagem gaiata que fazia de si própria. Coisa mais desagradável... olhar e ver que toda a sua vontade de viver, todo aquele sentimento lindo de felicidade, poderiam ser contrariados pelos sulcos que sabia ladear-lhe os lábios, ou pelo tom empalidecido da sua tez, ou ainda pelos olhos apequenados pela vermelhidão de noites mal dormidas. Não! Nada de olhar... melhor seria continuar naquela jovialidade onde o ridículo tem medida incerta. Proibidos também os debates interiores. Apenas pensamentos positivos, apenas a sua música, apenas os graciosos pulos desconjuntados e a enorme vontade de viver e sonhar.

Upss... chegou ao seu destino. Rompeu por entre os que aguardavam a abertura da repartição pública, onde assistia a uma acção de formação. Nas suas costas ficaram as paradas pessoas de olhares ansiosos.

Entrou, olhou à sua volta e percebeu o quanto era banal. Despiu a sua juventude no desligar da música. Hora de descer à terra, hora de se resumir a comum e simples mortal.

2 comentários:

Anónimo disse...

Lindo...para continuar...Se não conhecesse a personagem, esta, só por si a identificaria como sendo a Teresoca. Personagem extrovertida, meiga, simples, prática, controversa, timida a roçar o introvertido, stressada, carente, sensivel e...,para além de todos este e outros adjectivos da personagem..é e será a sempre a escrita da Maria Teresa.

Anónimo disse...

eheh ... por momentos pensei que te tinhas inspirado n'alguma personagem saida de jistória imaginadas por um qualquer escritor ... mas ao longo da escrita vou vendo-te dançar, rodopiar, improvisar ao som de qualque som vindo dessa minuscula maquineta que teima em acompanhar-te ... és mesmo tu !!!