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16 julho 2007

Caminhos Cruzados







Foto: de minha autoria









Vi uma ciganita, tinha ombros caídos e olhos de água. Sob o corpo frágil uma miscelânea de roupa branca e preta e nos pés uns soquetes brancos apareciam por todo o lado das abertas sandálias. O cabelo comprido estava apanhado em rabo-de-cavalo. Ao seu lado, também sentado, um bonito homem da mesma etnia, cabelo muito escuro, penteado com gel ou cera, manuseava CD’s que retirava de um gigante saco de plástico depositado a seus pés. As vestes do homem eram escuras, como a tristeza e silêncio que percebi em ambos.

Olhei-os de soslaio. Enquanto ele guardava os Cd’s no saco, ela fixava o olhar e, ainda que de olhos semicerrados, eu vi-lhe o desgosto escorrer até o chão escuro e sujo da estação onde aguardávamos o comboio.

De súbito, o homem baixou o rosto até o colocar entre as mãos vazias. Logo ela abriu os olhos e, em terno abraço, percebi-lhe o consolo. Os dedos finos passeavam por entre os fios de cabelo dele até chocarem com as lívidas faces, onde permaneciam por breves instantes, em carícia, depois retomavam o passeio.

Ouvi sussurros, vi abanos de cabeças de outras gentes que os olhavam. Alheios - ou talvez habituados – ao que os rodeava, o casal continuava a sua manifestação de desalento e força.

Um leve sorriso no rosto dela e a tristeza, que lhe lera pouco antes nos olhos, a dar lugar a um brilho de certezas. Daquele corpo frágil escapava um imenso carinho. Então ele levantou o rosto e olhou-a. Não sei que olhar terá feito, porque o meu se desviou aflito, na tentativa de evitar um choro.

Assim que me recompus, atrevi-me a olhá-los de novo e já ele segurava o rosto dela, em suaves festas, até se abraçarem e me deixarem completamente de rastos.

Vários pensamentos, em atropelo, despoletaram em mim.

Quantos de nós existem, vindos de fracas possibilidades, com um destino marcado ao primeiro respiro e seguimos caminhos delimitados por uma sociedade preconceituosa e cruel?! Quantos de nós têm a coragem de perceber que a dor existe em qualquer ser, bem como a alegria, a ansiedade, a revolta, o desejo, o mau, o bom, o feio e o belo?… E quantos de nós percebem que somos simples bolas tiradas de um grande saco, onde a sorte de se ser branco nada tem a ver com sentimentos e lugares pré-adquiridos na vida?

Percebo que continuarei o trajecto que me coube sem ter certezas de nada e muito pouco entender, ainda assim, creio que determinados actos emergem do ser humano, condicionados pela educação, raça, meio envolvente e, se a tudo isto juntarmos um gene qualquer que lhe confira coragem, inteligência, positivismo, tolerância e uma boa dose de capacidade em aceitar a mudança, pode ser que não obtenhamos o ideal humano, mas decerto encontraremos seres que marcam a diferença, porque não acomodados a estereótipos e jamais vencidos pela ignorância.

Partes da minha infância e adolescência, passeia-as a imaginar-me cigana. Os ciganos eram o sinónimo da liberdade, o contínuo aroma a flores silvestres, urze, terra, cheiro a Sol e a canto. Era o amarelo de Van Gogh em paisagens de espigas pisadas em correria, ou o verde dos prados selvagens, carregados de orvalho. Eram os chapéus negros a perpetuar a tez morena, o dormir ao relento sob um Céu protector, o andar orgulhosamente descalça.

Aos poucos adoptei as saias compridas e rodadas, os cabelos longos, as imensas argolas que me rasgavam os lóbulos das orelhas e, porque era muito morena, a identificação tornava-se possível. Sonhava com a minha mãe cigana que, ao contrário da minha verdadeira mãe, não tinha olhos azuis e muito menos cabelos loiros.

Um dia, ao passar por um jardim lisboeta, duas ciganas tolheram-me o caminho e, agarrando-me nas mãos, leram-me a sina. Deixei, sem medo ou quaisquer relutâncias, feliz. Da leitura recordo apenas um vaticínio.

“- Vejo a letra A… é a letra de um nome cigano. Um dia vais conhecer o homem que tem esse nome e casarás com ele… serás finalmente feliz!”

Nada disto me pareceu estranho, pelo contrário, tinha a certeza desse dia e com ele, o fechar finalmente de um ciclo de vida, com o meu regresso às origens.

Essas manias passaram com o tempo, sobretudo com a terrível constatação de que eu era a cara chapada da minha mãe sanguínea, ainda que versão morena. O respeito pela etnia cigana continuou, até entender que se estendia a quaisquer raças. Sou mais feliz assim. Não entendo separatismos, choca-me a burrice da catalogação.

Ao meu filho tentei transmitir que o verdadeiro ser é aquele que usa, acredita e aceita a visão do sentir e só depois percebe as cores como seu complemento. Ensinei que o menor pode ser maior e vice-versa, que não é importante vivermos em maioria, mas antes entender a sua fragilidade ou força. Tentei incutir-lhe a coragem da diferença, o não receio de estarmos sós nas nossas crenças e filosofias, que errar só é importante quando fingimos disso não nos darmos conta, não pedimos desculpa, ou tão pouco nos emendamos.

Transmiti-lhe que o amor chega em força de um abraço sentido, um abraço do tamanho do mundo com a força da nossa consciência. Sobretudo, transmiti-lhe que pequenos desvios, ao longo do tempo transformam-se em grandes distâncias onde nos podemos perder irremediavelmente.

1 comentário:

Anónimo disse...

.. muito interessante ... gostei ...

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