14-06-2021
“Esta mulher não tem preço…”
Fazia uma pausa expectante de mãozorra
aberta, ao nível do rosto: olhos escancarados; pupilas, castanho-escuro,
irrequietas, a correrem da esquerda para a direita e da direita para a esquerda.
“… É DE BORLA!” - rematava com sonora
gargalhada, com arranque de ahahahah a culminarem em kekekes, mais brandos e
guturais.
O meu amigo Manel Leitão era
assim: a transbordar de piadas, que repetia sempre com sucesso, sempre com os
mesmos gestos e sempre com as mesmas gargalhadas, como se, de cada vez que as
dizia, fossem sempre novidades.
O Manel era dos seres mais límpidos,
mais generosos e mais puros que conheci, no entanto, encerrava em si vivências,
conhecimentos e sentires inimagináveis. Sozinho seria o ser mais introspectivo
e sossegadito, mas assim que um de nós (seus amigos) entrávamos no seu “escritório”
- geralmente a pastelaria Central, que ficava mesmo por baixo do primeiro andar
onde residia, ou o Pantufa, na Rua onde morava o Vasco (sem dúvida, o seu
melhor amigo) – a sua cara resplandecia, a voz gargalhava e parecia que a malta
não se encontrara no dia anterior (para não dizer horas antes) e,
imediatamente, a mesa ornava-se de bejecas e mais bejecas e mais bejecas, amendoins,
cascas de amendoins, tremoços, cascas de tremoços e outros acepipes, para enganar os estômagos, e levantavam-se
nuvens de fumo de tabaco, que voltávamos a respirar e se entranhavam pelas
roupas e poros de todos nós.
Figura mediana de compleição forte,
rosto redondo e bolachudo com barba a esconder uma feia cicatriz junto ao
queixo, cabelo castanho levemente ondulado, não escondia a sua raiz indiana. Tinha
o hábito de abanar a cabeça, como se os cabelos curtos fossem melenas a
incomodar seu rosto. Nos relatos, os olhos transbordavam de emoções
antagónicas, emitiam sinais constantes de raiva, amor, indiferença, cuidado,
admiração, desprezo. Raramente olhava completamente de frente o interlocutor,
ainda que nos sentíssemos trespassados por teatrais raios invisíveis.
Conversava com o rosto quase perfilado, mas as pupilas irrequietas seguiam-nos
e fixavam-se breves segundos nas de cada um de nós: sedentos ouvintes, ansiosos
dos desfechos sempre iguais, quais criancinhas entusiasmadas a ouvir histórias
repetidas antes de adormecer: histórias de guerra e paz; histórias em busca de
propósitos; histórias de sonhos inventados, repletos de belas e de monstros. Quase
sempre, as gargalhadas rebentavam muito antes do final da oratória, em simbiose
antecipada. Então ouviam-se ais arrastados por todo o lado, limpavam-se
lágrimas fugidias e, ainda o silêncio não se instalara, ribombavam novas e
redobradas gargalhadas, até o doer dos estômagos. Até já ninguém saber o que
motivara tal onda contínua de hilariante barulheira.
Quando, por força do líquido
ingerido, se levantava para ir ao WC, caminhava rápido, direito, cabeça
erguida, meneando levemente os lados esquerdo e direito do corpo. No vestir,
não se lhe conheciam cores alegres: pulloveres azuis ou cinzentos; camisas
axadrezadas em tons de azul; t-shirts cinzentas; calças de ganga azul escuras
ou de fazenda cinzenta. As meias escuras revestiam-se de botas de camurça
acastanhada, de cano baixo, solas de borracha e dois furos em cada banda para
os atacadores.
O Manel tinha imensa dificuldade
em ficar só, em despedir-se dos amigos, talvez por isso, as garrafas de cerveja
nunca estavam vazias, ou não paravam de chegar à mesa.
“- Esta é para a porta!”, mas
nunca era, pelo menos enquanto a porta não se transformasse num enorme portão,
digno de mais uns litrinhos.
As suas estórias eram cheias de vida,
luzes e cores, mas adivinhavam-se-lhe tristezas: a sua realidade, aquela que a
sociedade o obrigara a ter quando entrou em Portugal, num pós 25 de Abril, com
a sua muito amada mãe – a D. Margarida – e foram obrigados a habitar um quarto
na Pensão Gare, em Mem Martins. Em Angola, a sua terra querida, fizera serviço
militar, ele, pacifista ferrenho, contava-nos que aguentara porque a sua
especialidade era a de disparar bazucas, o que o obrigava a manter distâncias
consideráveis com o “inimigo”, ficando este invisível, nunca se apercebendo –
para seu grande desejo - ter morto alguém. Aqui, no Portugal restante, era
bancário de segunda a sexta-feira, dias em que se levantava de madrugada para
apanhar o comboio para Lisboa e aproveitava todos os minutinhos para – fosse em
que banco fosse – dormir profundamente. Mas a sua vida, a verdadeira, aquela
que fazia jus de nos presentear, era a de músico. Tocava como ninguém, cheio de
alma: era um clássico, um Segovia, que afirmava ter dito serem necessários 60
anos para se tocar bem um violão (30 para cada uma das mãos), um contestatário,
um João Gilberto, um lobo atento às notas que dedilhava grotescamente na
perfeição. O braço da viola/guitarra clássica era invadido pela sua mão
esquerda de dedos gordos e irrequietos, unhas rentes e amarelecidas pelo
tabaco, a desenharem autênticos aranhiços, numa ginástica fantástica em
metamorfose simbiótica com as cordas, enquanto o corpo do instrumento se rendia
à mão direita, de unhas, também amarelecidas, mas compridas, a beliscarem as
cordas e a batucar a madeira. E os sons bonitos aconteciam, transformavam-se em
caminhos cheios de colcheias, dós maiores e menores, oitavas a cima e a baixo,
bemóis, sustenidos… tudo a fazer sentido, como num encantamento, em apelo de
vozes, a sua e as nossas.
Muito se cantava.
Nunca era bastante!
O seu canto transportava-me para
Angola, onde me via a entrar em machimbombos, a passear por acácias e
embondeiros, a comer laranjas, a sentir o calor húmido e a perceber cores
quentes por todo o lado; com ele vestia a pele de Luísa sobe que sobe, sobe a
calçada, no poema de António Gedeão “Calçada de Carriche”, cansada de ser
mulher, desconhecedora de outra condição que não a de submissa, diante uma
sociedade ainda muito machista; percebia os olhos doces da Amélia, de Carlos
Mendes; bamboleava-me em “Garota de Ipanema”, de Jobim e Vinícius; cantava as
“Águas de Março”, de Elis Regina; encarnava o inesquecível João Gilberto com o
“Desafinado”, a “Bahia com H”, o “Brasil é com S”, ou o “Samba de uma Nota Só”;
transformava-me – de novo - na Pimentinha, era caipira; sambava com Chacrinha,
era a Teresinha naquele abraço caloroso; imaginava a “construção” de Chico
Buarque; era o “Menino do Rio”, de Caetano Veloso; o “Explode coração” de Maria
Betânea; o “Sonho Meu” de Gal Costa; para voltar ao “Samba da Benção” e aos
afro-sambas, de Vinícius de Morais e Baden Powell; sentir “No Woman no Cry” e
“Sarará Miolo”, de Gilberto Gil; ria com os sons do “Pato” de João Gilberto. O
reportório imenso, mudava constantemente de registo e, do nada, por sugestão do
Vasco, que sempre acompanhava o Manel à viola, éramos maravilhados com as
baladas de rock: “A Stair way to Heaven” dos Led Zeppellin, “From the Beginning”,
“Lucky Man” dos Emmerson, Lake & Palmer; “Wish You Were Here”, dos PinK
Floyd; ou atrevíamo-nos a acompanhar o “BlacK Magic Woman” e “Let the Children
Play”, de Carlos Santana ou Também os Queen que apareciam com “Bohemian
Rapsody”, “Love of My Life” ou “We Are the Champions”; entrávamos de rompante
pelos sons flamencos de Paco de Lucia em ”Solo Quiero Caminar”, “Entre “Dos
Aguas” e o “Concierto de Aranjuez”; a mais do que uma viola, escutava extasiada
o “Mediterranean Sundance” de Al Di Meola, Paco de Lucia e John McLaugnin, era cigana
a dançar ao redor de fogueiras, em noites cheias de encanto e vida, de sangue a
ferver pelas veias, numa espécie de orgulho inexplicável, onde até o ar poluído
era sempre jovem; ouvíamos em silêncio majestoso o “Spain” de Chick Corea e
entrávamos pelos blues a rasgar as noites em apelos sofridos de uma quase
esquecida escravatura; rasgávamos as noites com Muddy Waters, Miles Davis, Charlie
Parker, John Lee Hooker ou – pelo jazz de fusão - “birdland” dos WeatherReport…
Ouviam-se os “Verdes Anos”, de Carlos Paredes; cantavam-se composições dos
nossos poetas e cantautores: “Frágil”, “Dá-me Lume”, de Jorge Palma; “Porto
Côvo”, “Porto Sentido”, “Sei de uma Camponesa”, de Rui Veloso; “Latina
América”, “Nó Cego”, “Ribeira”, dos Jafumega; “Com um Brilhozinho nos Olhos”,
“O Primeiro Dia”, “A Noite Passada”, “Feira da Ladra” de Sérgio Godinho; ao de
leve, soltávamos frases cantadas pelo Fausto, como “por este Rio Acima”;
relembrávamos um 25 de Abril com os cantos de José Mário Branco: “ Eu Vim de
Longe, Eu Vou Pra Longe”, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”;
cantava-se Zeca Afonso: “Venham Mais Cinco”, “Somos Filhos da Madrugada”,
“Grândola Vila Morena”, “Vejam Bem “, “Vampiros”, “Traz Outro Amigo Também”; sonhávamos
a “Pedra Filosofal”, de Manuel Freire; víamos a “Menina dos Olhos D’Água”, de
Pedro Barroso; cantávamos a “Fala do Homem Nascido”, de Adriano Correia de
Oliveira; rendíamo-nos aos fados de Carlos do Carmo, onde homenageávamos –
entre outros - o grande poeta Ary dos Santos: “Os Putos”, “Canoas do Tejo”, “O
Homem das Castanhas”, “por morrer uma Andorinha”; e, inevitavelmente - para
grande nervosismo meu -, as guitarradas a anunciar os poucos fados que teimavam
ouvir-me cantar e em que eu fechava os olhos, crispava o semblante, fechava os
punhos e todo o corpo se entesava enquanto enfiava o ar, de rompante, pelos
pulmões e o expelia, sentido, a fazer surgir poemas de Pedro Homem de Mello num
“Povo que Lavas no Rio” ou a aciganar a voz numa lembrança de os meus “ 20 anos”,
numa tentativa de imitar a Cidália Moreira.
Em tantos poetas cantados e tantas
músicas dedilhadas, num sem-fim incrível de sons variados, passávamos do canto
mais descontraído - a roçar o pop - para o canto contestatário e
revolucionário, vestíamos o rock, agarrávamos o fado, sem o venerar, trauteávamos,
cantarolávamos, voávamos encantados por mundos que, ao serem desbravados, nos
pareciam seguros. Tudo em prole de um convívio onde a magia acontecia, os
excessos se excediam, a alegria vibrava junto com a tristeza e, por vezes, o
desnorte de uma juventude a inventar-se transparecia.
Cantar, ouvir tocar, cantar, ouvir
tocar, cantar… Pouco importava se estava semitonada, se os meus agudos se recusavam
a sair: “para quem é!?!?... um oitavo de bacalhau basta!” dizia ele a gargalhar
e, afinal, eu era uma mulher sem preço.
Por vezes, adiantávamo-nos e
procurávamo-lo em sua casa, onde a D. Margarida nos recebia como ninguém. Era
uma senhora dócil, de peso imenso e alegria a condizer. Fazia-nos petiscos,
bebíamos as inevitáveis cervejas, ou um belo de um tinto e, claro, barulhávamos
a pequena sala com as vozes elevadas, gargalhadas infindas, muita música e
muito canto, com o passar constante, por entre pernas, do seu querido Dórémi: o
canino fofinho, rafeiro e pulguento (que sempre nos presenteava com algumas
dessas espécies), que o Manel adorava, concedendo-lhe festas constantes, e
mimos de bebé, com voz arrastada de mel.
Quando Dórémi morreu o Manel e o
Vasco fizeram-lhe o funeral. Os olhos do nosso amigo vestiram de luto por muito
tempo.
Quando íamos a sua casa, a D.
Margarida – senhora muito avançada para a época – sentava-se na mesinha de
canto e acompanhava o ritmo com um raspador de citrinos e uma colher de sobremesa,
qual reco reco. O orgulho por seu filho era notório. No ar quase saturado da
sala lotada, respirava-se alegria, consolo e muito amor. Por último, no avançar
da noite, a D. Margarida adormecia: braços entrelaçados à altura da cintura,
queixo caído para o peito. Nem mesmo o barulho interrompia aquele sono, antes
(estou convencida) deveria alegrar seus sonhos.
Os dias decorriam com estes
encontros cheios de amizade e confusão, onde os risos não precisavam de
genuínas piadas, eles eras autênticas e inevitáveis piadas.
Muitas das noites prolongaram-se
com término em bares de Sintra, Cascais, Lisboa ou Algueirão: Taverna dos
Trovadores, Rasputin, Bar Finalmente, Kontiki, entre outros. As saídas eram
sentidas de intensa excitação, de tão imprevisíveis e por algum nervosismo da
minha parte: pessoa insegura, sempre à espera que os palcos por onde
passássemos fossem visitados pela trupe e que, teimosamente, acabassem por me
chamar para cantar. Quando o regresso de Lisboa era feito de comboio, não era
invulgar perdermos o último, perto da 1:30. Vadiávamos então pela cidade, por
entre botecos e o rio Tejo, até apanharmos um dos primeiros da manhã. Já no
comboio, alguns rendiam-se ao cansaço e balançavam a cabeça e o corpo ao ritmo
do andamento, em sono profundo, já desligados dos resistentes que,
teimosamente, continuavam as cantorias, as gargalhadas e os alegres relatos dos
acontecimentos da noite, onde o artista principal era, usualmente, o Manel
Leitão.
Certa noite, num qualquer bar
lisboeta, o Manel sucumbiu às noites pouco dormidas durante a semana de
trabalho bancário e adormeceu sentado num sofá. Foi acordado pelo empregado de
mesa, farto de nós e a querer fechar o bar. Ao perceber que lhe foi pedido um
pagamento, num ápice, o Manel levantou-se e, com voz sonante e assertiva, quase
gritou:
“- Não pago!!!” - enquanto apalpava
os bolsos das calças e nos fez, miraculosamente, permanecer em silêncio,
atónitos, olhos cravados na sua figura trémula, a aguardarmos um desfecho
qualquer.
“- Tenho passe!” – julgando ele ter sido
interpelado por um revisor da CP.
Milésimos de segundos durou o
silêncio, logo quebrado por gargalhadas até ao choro de todos nós.
Outra vez, num bar para os lados
da Rua da Rosa, em Lisboa, o Manel foi assediado por uma estonteante moçoila
louraça, a quem presenteou a sua bela voz maviosa (a mesma que usava com o
Dórémi).
“- Coisa mai lindaaaa.” – dizia,
num arrasto de voz, não resistindo a tamanho encanto, cheio de curvas.
De imediato, foi tal formosura convidada a sentar-se à nossa mesa.
Deleitado com a atenção recíproca, não
parava de a bajular – “- Coisa mai linnnnda” - até ser alertado pelo Vasco para
o tamanho descomunal dos pés e mãos da moçoila. Tratou de, delicadamente, a
despachar. Embora raramente lhe conhecêssemos namorada, todo o seu
comportamento era o de heterossexual e, talvez preocupado com as reacções de
gozo que alguns amigos pudessem ter se soubessem deste episódio - transtornadíssimo
e algo envergonhado - pediu-nos que o apagássemos da memória e não o
referíssemos ao resto do grupo. Assim cumprimos, até hoje. Julgo que, se
estiveres a ler este escrito, acharás, piada e me perdoarás pela inconfidência.
Um dia foi operado a um abcesso
inter-nadegueiro, mesmo acima do ânus. Em franca recuperação, já com alta da
clínica, como homem sedento de liberdade, não resistiu ao chamamento do seu
amigo Vasco para passearem pela praia Grande. E lá foram os dois homenzarrões
(um em altura, outro em largura) em cima de uma motorizada Honda 50, que
tiveram o cuidado de revestir de almofadas: just in case. Claro que, quando os
pontos rebentaram, o sofrimento deve ter sido imenso, mas o nosso amigo Manel
aguentou, forte e feio, o caminho tortuoso, cheio de curvas a obrigar a
travagens contínuas, com descidas e subidas acentuadas. Mais tarde, riu-se da
enorme patetice e transformou o episódio em mais um motivo de gargalhadas.
Uma noite fomos até ao bar
“Marquês da Sé”, pertinho da Sé de Lisboa. No palco, o Luís Fernando (actualmente
um músico conhecido pelo seu registo bem roqueiro) segurava uma viola, da qual
saíam os sons calmos (pasme-se hoje) de bossa nova. Na assistência, a sua então
companheira: Adelaide Ferreira que, de franja elevada (à anos 80) e cabelo
comprido aloirado, emprestava ao Bar um não-sei-quê de modernidade e fama que
me deliciou. Todos aqueles acordes eram praia do Manel Leitão, que enaltecia a
prestação irrepreensível, de elevado gabarito, do Luís Fernando por conseguir
desenhar os tais “aranhiços” complicados ao longo do braço da viola.
Aquando da pausa, tal qual um
menino bem comportado e confiável, o nosso amigo dirigiu-se ao músico e
elogiou-o para, logo de seguida, sem dar azo a arrependimentos, lhe pedir
autorização para tocar uma “musiquinha”. A permissão pareceu-me um pouco a
contragosto, mas – mais uma vez - a voz melosa do Manel surtiu o efeito
desejado e o Luís Fernando lá lhe passou o violão.
Mal sabia o que se seguiria.
Rapidamente, o palco tinha um
novo actor/músico que, tocou e tocou e tocou e… o intervalo acabou, mas só mais
uma, e outra, já agora… outra ainda. Vi a Adelaide Ferreira, semblante fechado,
falar com o seu companheiro e percebi que a situação já não era sustentável.
Alheio a tudo a que não fosse o seu momento de actuação, o Manel passou da bossa
nova, para outros registos e, aquando de um tema de alta contestação, onde a
voz melosa deu lugar ao ressoar gutural, e ameaçador, de “… yo no pago los
tributos…”, de olhar ameaçador a varrer a plateia (agora) completamente em
silêncio: rosto bolachudo, olhos esbugalhados, ornados de fundas olheiras
escuras e triangulares, pupilas mergulhadas num vermelho amarelado, queixada
inferior nervosa, como se procurasse melhor encaixe, narinas dilatadas… fez a
pobre da viola voltear pelo ar para cair no seu colo, onde foi alvo de batuques
fortíssimos, enquanto lhe puxava até aos limites possíveis as cordas, para
visível desespero do Luís Fernando que – já sem aguentar mais tal pressão - quase
a arrancou das suas mãos, à força, e lhe pediu, baixinho, que se ausentasse do
palco. Quase em vénia, de novo com a voz melosa, agradeceu, desceu do palco e
dirigiu-se a nós: rosto cândido e bonacheirão, sorridente, corpo a ondular
levemente no curto caminhar, ar triunfante.
Nos amores a sorte era-lhe
desconhecida. Um dia apareceu alguém a quem dedicou afecto, mas ao aceitar
acompanhá-la a casa, durante o trajecto, apercebeu-se de que o ex da mocita
ainda não era ex e para exacerbar o seu desapontamento e aumentar o receio da
recente revelação, quando ela abriu a porta de casa, o Manel deu de caras com
um crucifixo pendurado no Hall de entrada, qual augúrio, que o impediu de
entrar, acabando por dar uma desculpa esfarrapada à rapariga e pôr-se a milhas
o mais rápido que conseguiu. Não reincidindo em tal relação.
Em outra experiência, que
acreditou vivamente ser seríssima, apaixonou-se por uma rapariguita que lhe
despertava sentimentos de amor, carinho e protecção. Tratava-a nas palmas da
mão e ela acabou por o enganar miseravelmente, roubando, a ele e à D. Margarida,
uma quantia considerável de dinheiro. Terá sido este último caso que o mais
desgostou, colocando no seu semblante uma nuvem que – quem mais o conhecia –
facilmente identificava como manifestação de enorme sofrer.
Não tinha, repito, muita sorte
com as mulheres, este meu amigo e, num revés estúpido com (principalmente) um
dos seus (nossos) amigos, também ele músico, e a doença de sua mãe – condição
que assustava enormemente a sua alma sedenta de paz, amor, harmonia e muita
amizade - o Manel não aguentou, ganhou fobia ao local que escolhera para morar
e decidiu partir.
Mudaram-se para Colares, e
tornaram-se a mudar para o Pinhal Novo, até que, dado o agravar do estado
físico da D. Margarida – a necessitar de maiores cuidados e de melhor
acompanhamento médico e familiar – esta grande e generosa senhora foi para Coimbra
onde a sua filha (irmã do Manel) residia.
O nosso Manel, que afirmava que
no dia em que sua mãe morresse ele também morreria, incapaz de a deixar, seguiu
com ela em direcção à cidade dos estudantes.
Típico amigo mais velho, de quem
era fácil gostar, o seu carisma transformava-o em constante motor de arranque
de boa disposição. Claro que as cervejas ajudavam um pouco.
No dia do funeral do pai do Toni
de Sousa – também ele músico, numa vertente mais solista – o Manel fez questão
de o ajudar a carregar o caixão. Em certo ponto do trajecto, o Toni pisou o
Manel, desculpando-se de imediato pelo percalço. Em resposta, este desvalorizou
a situação, afirmou que não era nada, que estava tudo bem: “- O pé é teu…”.
Esta simples e espontânea frase apaziguou a dor do Toni, e fez com que quase se
desmanchasse em riso, com o risco de lhe faltar as forças e deixar cair o
caixão. Durante largos tempos seria, também este episódio, relato nas mesas de
café, como prova de existência de uma ténue linha entre a dor e a boa
disposição; o sentimento de amizade aliado a um lassez faire laissez passer que
tanto caracterizava o nosso grupo de amigos.
Pensando bem, o Manel seria digno
de uma biografia onde, lamentavelmente, o final, não poderia ser feliz. Seria guião
de filme onde as gargalhadas surgem, em imagens de degradação, tristeza,
abandono e solidão. Filme onde nas entrelinhas do Guião se sentia o revés de
escolhas, o avesso de deixar andar, a realidade versus “tudo ficará bem”. Ele
seria o próprio filme, aquele onde amiúde nos revimos, mas rejeitamos como
nosso, porque termina mal: termina com a morte, quando ainda se sente tão viva
a memória dos alegres convívios, quando se ouvem ainda as piadas e ressoam as
gargalhadas, quando ainda se percebe e sente o amor fácil e simples que tinha
pela música, pelas tertúlias e por todos nós.
O Manel era o concierto de Aranjuez que sublimemente tocava e respirava, era um Paco de Lucia, era um Manitas de Plata, era um contestatário Pablo Milanês, mas, sobretudo, era o artista que no final do filme já nos pertence, faz parte dos nossos poros, é a nossa pele. O artista que morre no final do filme, desgraçado e incompreendido, sem que - para nós – faça algum sentido, porque nos entrou no coração e aceitámos todas as suas fraquezas, percebemos a sua postura, a sua bondade e inocência, as suas travessuras. E, no final, sentimos que a sua alma se perdeu por entre sujidades alheias em luta pela liberdade, suja na imundície de falta de escrúpulos de alguns.
O Bom Selvagem de Rousseau.
E damos por nós a chorar a
inevitabilidade de um desfecho triste, enquanto resposta à própria inércia e
impotência.
Saudosos, desejamos que, ao menos
no seu período último de vida, longe de todos nós, tenha sido compensado com
amor e que se tenha, ele próprio, encontrado.
A vida tem destas coisas: aquele
ser carismático, ferido por seus amores, ofendido por amigos que não souberam
respeitar a sua sensibilidade e por outros que, por circunstâncias várias,
mudaram os seus hábitos, abandonando-o, refugiou-se em isolamento e distância
e, tanto quanto sei, não encontrou local que presenteasse com as suas
gargalhadas e a sua música. Teve, no entanto, já em Coimbra, sua última morada,
finalmente, a sorte merecida de encontrar uma mulher a quem se uniu e viveu até
ao dia da sua morte.
Não sei a causa da morte, não
perguntei.
Não interessa.
Morreu!
Morreu o amigo que me fazia
cantar “Povo que lavas no rio” no bar “O Berro”, no “Kontiki”, onde calhasse. O
amigo sempre a incentivar-me e sempre pronto a escutar os meus fados e
standards de jazz. O amigo sempre pronto a enaltecer os meus fracos dotes, que
– sem saber da minha enorme insegurança, ou talvez por a conhecer – fazia com
que eu me escondesse, aquando da ida aos bares por onde acabava a tocar, antes
que ele me anunciasse e me “obrigasse” – por maior vergonha na recusa - a pisar
o palco.
Morreu o amigo que, certa noite,
fez questão de jantar comigo e, com imenso sofrer, mas reconhecida
verticalidade, me alertou para enganos vários de que recusei dar conta. O amigo
que me acusou de ser demasiado ingénua, na vez de parva e me tentou abrir os
olhos para a vidinha que eu tinha. O amigo cuja sensibilidade roçou a minha, ao
ponto de ser eu quase a consolá-lo pelas revelações que desenrolava durante o
jantar. E bebemos, meu Deus, como bebemos. O amigo que, para atenuar a minha
teimosa dor (em negação) me levou nessa noite ao Kontiki e, sem que saiba como,
do nada, nos colocou no palco. Lembro bem um dos temas (talvez tenha sido o
único): “The days of wine and roses”. Lembro demasiado bem de o cantar em
choro, inevitavelmente, desafinada e com plena noção de não conseguir fazer
melhor. Lembro as lágrimas desconsoladas a formar uma cortina impenetrável para
a sala. Lembro a vergonha sem sentido. Não recordo como deixei o palco, tão
pouco como regressei a casa. Apenas senti que as minhas forças soçobravam, mas
o meu querido e saudoso Manel terá decerto, nessa noite, gasto todas as suas
energias ao ter tomado a difícil decisão de me alertar para factos que poderiam
pôr em causa uma amizade que tanto prezava. Escolheu o caminho mais tortuoso: o
da rectidão e da verdade. Não é qualquer um que tem tamanha coragem. Eu
entendi-a, melhor, sentia-a.
Obrigada, meu grande amigo,
obrigada por te teres cruzado comigo e permitido que ficasse.
Não voltámos a falar no assunto
desse jantar mas, se dúvidas houvesse, tive a certeza que aquele homem era
especial: honesto, verdadeiro… doesse a quem doesse, mesmo que fosse apanhado
por entre fogos. E, nesse dia, o carinho e admiração por ele aumentaram. Por
entre as cortinas galhofeiras do seu palco de vida, vislumbrei um ser enorme,
corajoso, sério e verdadeiramente digno de se gostar.
O meu mundo, tal qual o conhecia,
foi – nessa noite - tocado, beliscado e, a partir daí, paulatinamente, iniciou
o seu desmoronar.
Esta tua amiga agradece o
privilégio de me teres aceitado no teu mundo, de me teres enriquecido com
estórias, de me avivares o gosto musical e poético. Obrigada por me teres
chamado, generosamente, “Pimentinha”, por me dares alguma confiança, até mesmo
quando me espantavas os pânicos, que durante tantos anos se me agarraram à
pele. Agradeço os teus risos, os teus gestos meigos e arrastar de sons guturais
quando me transmitias carinho.
Obrigada por todos os momentos de
ti.
Segue agora por essa estrada
estelar no teu carocha-amarelado, com tua mãe como tua espantosa companheira e
Dórémi, esse cão pulguento, que não poderia ter tido melhor companheiro.
Toca as tuas músicas. Embala as
almas do Olimpo. Encontra outros amigos com quem te partilhes e não te magoem.
E, se possível, não te esqueças de nós, não te esqueças de mim.
Um dia voltaremos a abraçar-nos.
Cantaremos as nossas músicas até Orpheu nos embalar, felizes, nunca
suficientemente acompanhados, nunca praticamente sós, mas sempre sedentos de
espalhar alegria e música e muita conversa.
1 comentário:
Belo!
Enviar um comentário