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22 dezembro 2024

O Meu Amigo Manel

 

14-06-2021

 

 

“Esta mulher não tem preço…”

Fazia uma pausa expectante de mãozorra aberta, ao nível do rosto: olhos escancarados; pupilas, castanho-escuro, irrequietas, a correrem da esquerda para a direita e da direita para a esquerda.

 “… É DE BORLA!” - rematava com sonora gargalhada, com arranque de ahahahah a culminarem em kekekes, mais brandos e guturais.

O meu amigo Manel Leitão era assim: a transbordar de piadas, que repetia sempre com sucesso, sempre com os mesmos gestos e sempre com as mesmas gargalhadas, como se, de cada vez que as dizia, fossem sempre novidades.

O Manel era dos seres mais límpidos, mais generosos e mais puros que conheci, no entanto, encerrava em si vivências, conhecimentos e sentires inimagináveis. Sozinho seria o ser mais introspectivo e sossegadito, mas assim que um de nós (seus amigos) entrávamos no seu “escritório” - geralmente a pastelaria Central, que ficava mesmo por baixo do primeiro andar onde residia, ou o Pantufa, na Rua onde morava o Vasco (sem dúvida, o seu melhor amigo) – a sua cara resplandecia, a voz gargalhava e parecia que a malta não se encontrara no dia anterior (para não dizer horas antes) e, imediatamente, a mesa ornava-se de bejecas e mais bejecas e mais bejecas, amendoins, cascas de amendoins, tremoços, cascas de tremoços e outros acepipes, para enganar os estômagos, e levantavam-se nuvens de fumo de tabaco, que voltávamos a respirar e se entranhavam pelas roupas e poros de todos nós.

Figura mediana de compleição forte, rosto redondo e bolachudo com barba a esconder uma feia cicatriz junto ao queixo, cabelo castanho levemente ondulado, não escondia a sua raiz indiana. Tinha o hábito de abanar a cabeça, como se os cabelos curtos fossem melenas a incomodar seu rosto. Nos relatos, os olhos transbordavam de emoções antagónicas, emitiam sinais constantes de raiva, amor, indiferença, cuidado, admiração, desprezo. Raramente olhava completamente de frente o interlocutor, ainda que nos sentíssemos trespassados por teatrais raios invisíveis. Conversava com o rosto quase perfilado, mas as pupilas irrequietas seguiam-nos e fixavam-se breves segundos nas de cada um de nós: sedentos ouvintes, ansiosos dos desfechos sempre iguais, quais criancinhas entusiasmadas a ouvir histórias repetidas antes de adormecer: histórias de guerra e paz; histórias em busca de propósitos; histórias de sonhos inventados, repletos de belas e de monstros. Quase sempre, as gargalhadas rebentavam muito antes do final da oratória, em simbiose antecipada. Então ouviam-se ais arrastados por todo o lado, limpavam-se lágrimas fugidias e, ainda o silêncio não se instalara, ribombavam novas e redobradas gargalhadas, até o doer dos estômagos. Até já ninguém saber o que motivara tal onda contínua de hilariante barulheira. 

Quando, por força do líquido ingerido, se levantava para ir ao WC, caminhava rápido, direito, cabeça erguida, meneando levemente os lados esquerdo e direito do corpo. No vestir, não se lhe conheciam cores alegres: pulloveres azuis ou cinzentos; camisas axadrezadas em tons de azul; t-shirts cinzentas; calças de ganga azul escuras ou de fazenda cinzenta. As meias escuras revestiam-se de botas de camurça acastanhada, de cano baixo, solas de borracha e dois furos em cada banda para os atacadores.

O Manel tinha imensa dificuldade em ficar só, em despedir-se dos amigos, talvez por isso, as garrafas de cerveja nunca estavam vazias, ou não paravam de chegar à mesa.

“- Esta é para a porta!”, mas nunca era, pelo menos enquanto a porta não se transformasse num enorme portão, digno de mais uns litrinhos.

As suas estórias eram cheias de vida, luzes e cores, mas adivinhavam-se-lhe tristezas: a sua realidade, aquela que a sociedade o obrigara a ter quando entrou em Portugal, num pós 25 de Abril, com a sua muito amada mãe – a D. Margarida – e foram obrigados a habitar um quarto na Pensão Gare, em Mem Martins. Em Angola, a sua terra querida, fizera serviço militar, ele, pacifista ferrenho, contava-nos que aguentara porque a sua especialidade era a de disparar bazucas, o que o obrigava a manter distâncias consideráveis com o “inimigo”, ficando este invisível, nunca se apercebendo – para seu grande desejo - ter morto alguém. Aqui, no Portugal restante, era bancário de segunda a sexta-feira, dias em que se levantava de madrugada para apanhar o comboio para Lisboa e aproveitava todos os minutinhos para – fosse em que banco fosse – dormir profundamente. Mas a sua vida, a verdadeira, aquela que fazia jus de nos presentear, era a de músico. Tocava como ninguém, cheio de alma: era um clássico, um Segovia, que afirmava ter dito serem necessários 60 anos para se tocar bem um violão (30 para cada uma das mãos), um contestatário, um João Gilberto, um lobo atento às notas que dedilhava grotescamente na perfeição. O braço da viola/guitarra clássica era invadido pela sua mão esquerda de dedos gordos e irrequietos, unhas rentes e amarelecidas pelo tabaco, a desenharem autênticos aranhiços, numa ginástica fantástica em metamorfose simbiótica com as cordas, enquanto o corpo do instrumento se rendia à mão direita, de unhas, também amarelecidas, mas compridas, a beliscarem as cordas e a batucar a madeira. E os sons bonitos aconteciam, transformavam-se em caminhos cheios de colcheias, dós maiores e menores, oitavas a cima e a baixo, bemóis, sustenidos… tudo a fazer sentido, como num encantamento, em apelo de vozes, a sua e as nossas.

Muito se cantava.

Nunca era bastante!

O seu canto transportava-me para Angola, onde me via a entrar em machimbombos, a passear por acácias e embondeiros, a comer laranjas, a sentir o calor húmido e a perceber cores quentes por todo o lado; com ele vestia a pele de Luísa sobe que sobe, sobe a calçada, no poema de António Gedeão “Calçada de Carriche”, cansada de ser mulher, desconhecedora de outra condição que não a de submissa, diante uma sociedade ainda muito machista; percebia os olhos doces da Amélia, de Carlos Mendes; bamboleava-me em “Garota de Ipanema”, de Jobim e Vinícius; cantava as “Águas de Março”, de Elis Regina; encarnava o inesquecível João Gilberto com o “Desafinado”, a “Bahia com H”, o “Brasil é com S”, ou o “Samba de uma Nota Só”; transformava-me – de novo - na Pimentinha, era caipira; sambava com Chacrinha, era a Teresinha naquele abraço caloroso; imaginava a “construção” de Chico Buarque; era o “Menino do Rio”, de Caetano Veloso; o “Explode coração” de Maria Betânea; o “Sonho Meu” de Gal Costa; para voltar ao “Samba da Benção” e aos afro-sambas, de Vinícius de Morais e Baden Powell; sentir “No Woman no Cry” e “Sarará Miolo”, de Gilberto Gil; ria com os sons do “Pato” de João Gilberto. O reportório imenso, mudava constantemente de registo e, do nada, por sugestão do Vasco, que sempre acompanhava o Manel à viola, éramos maravilhados com as baladas de rock: “A Stair way to Heaven” dos Led Zeppellin, “From the Beginning”, “Lucky Man” dos Emmerson, Lake & Palmer; “Wish You Were Here”, dos PinK Floyd; ou atrevíamo-nos a acompanhar o “BlacK Magic Woman” e “Let the Children Play”, de Carlos Santana ou Também os Queen que apareciam com “Bohemian Rapsody”, “Love of My Life” ou “We Are the Champions”; entrávamos de rompante pelos sons flamencos de Paco de Lucia em ”Solo Quiero Caminar”, “Entre “Dos Aguas” e o “Concierto de Aranjuez”; a mais do que uma viola, escutava extasiada o “Mediterranean Sundance” de Al Di Meola, Paco de Lucia e John McLaugnin, era cigana a dançar ao redor de fogueiras, em noites cheias de encanto e vida, de sangue a ferver pelas veias, numa espécie de orgulho inexplicável, onde até o ar poluído era sempre jovem; ouvíamos em silêncio majestoso o “Spain” de Chick Corea e entrávamos pelos blues a rasgar as noites em apelos sofridos de uma quase esquecida escravatura; rasgávamos as noites com Muddy Waters, Miles Davis, Charlie Parker, John Lee Hooker ou – pelo jazz de fusão - “birdland” dos WeatherReport… Ouviam-se os “Verdes Anos”, de Carlos Paredes; cantavam-se composições dos nossos poetas e cantautores: “Frágil”, “Dá-me Lume”, de Jorge Palma; “Porto Côvo”, “Porto Sentido”, “Sei de uma Camponesa”, de Rui Veloso; “Latina América”, “Nó Cego”, “Ribeira”, dos Jafumega; “Com um Brilhozinho nos Olhos”, “O Primeiro Dia”, “A Noite Passada”, “Feira da Ladra” de Sérgio Godinho; ao de leve, soltávamos frases cantadas pelo Fausto, como “por este Rio Acima”; relembrávamos um 25 de Abril com os cantos de José Mário Branco: “ Eu Vim de Longe, Eu Vou Pra Longe”, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”; cantava-se Zeca Afonso: “Venham Mais Cinco”, “Somos Filhos da Madrugada”, “Grândola Vila Morena”, “Vejam Bem “, “Vampiros”, “Traz Outro Amigo Também”; sonhávamos a “Pedra Filosofal”, de Manuel Freire; víamos a “Menina dos Olhos D’Água”, de Pedro Barroso; cantávamos a “Fala do Homem Nascido”, de Adriano Correia de Oliveira; rendíamo-nos aos fados de Carlos do Carmo, onde homenageávamos – entre outros - o grande poeta Ary dos Santos: “Os Putos”, “Canoas do Tejo”, “O Homem das Castanhas”, “por morrer uma Andorinha”; e, inevitavelmente - para grande nervosismo meu -, as guitarradas a anunciar os poucos fados que teimavam ouvir-me cantar e em que eu fechava os olhos, crispava o semblante, fechava os punhos e todo o corpo se entesava enquanto enfiava o ar, de rompante, pelos pulmões e o expelia, sentido, a fazer surgir poemas de Pedro Homem de Mello num “Povo que Lavas no Rio” ou a aciganar a voz numa lembrança de os meus “ 20 anos”, numa tentativa de imitar a Cidália Moreira.

Em tantos poetas cantados e tantas músicas dedilhadas, num sem-fim incrível de sons variados, passávamos do canto mais descontraído - a roçar o pop - para o canto contestatário e revolucionário, vestíamos o rock, agarrávamos o fado, sem o venerar, trauteávamos, cantarolávamos, voávamos encantados por mundos que, ao serem desbravados, nos pareciam seguros. Tudo em prole de um convívio onde a magia acontecia, os excessos se excediam, a alegria vibrava junto com a tristeza e, por vezes, o desnorte de uma juventude a inventar-se transparecia.

Cantar, ouvir tocar, cantar, ouvir tocar, cantar… Pouco importava se estava semitonada, se os meus agudos se recusavam a sair: “para quem é!?!?... um oitavo de bacalhau basta!” dizia ele a gargalhar e, afinal, eu era uma mulher sem preço.

Por vezes, adiantávamo-nos e procurávamo-lo em sua casa, onde a D. Margarida nos recebia como ninguém. Era uma senhora dócil, de peso imenso e alegria a condizer. Fazia-nos petiscos, bebíamos as inevitáveis cervejas, ou um belo de um tinto e, claro, barulhávamos a pequena sala com as vozes elevadas, gargalhadas infindas, muita música e muito canto, com o passar constante, por entre pernas, do seu querido Dórémi: o canino fofinho, rafeiro e pulguento (que sempre nos presenteava com algumas dessas espécies), que o Manel adorava, concedendo-lhe festas constantes, e mimos de bebé, com voz arrastada de mel.

Quando Dórémi morreu o Manel e o Vasco fizeram-lhe o funeral. Os olhos do nosso amigo vestiram de luto por muito tempo.

Quando íamos a sua casa, a D. Margarida – senhora muito avançada para a época – sentava-se na mesinha de canto e acompanhava o ritmo com um raspador de citrinos e uma colher de sobremesa, qual reco reco. O orgulho por seu filho era notório. No ar quase saturado da sala lotada, respirava-se alegria, consolo e muito amor. Por último, no avançar da noite, a D. Margarida adormecia: braços entrelaçados à altura da cintura, queixo caído para o peito. Nem mesmo o barulho interrompia aquele sono, antes (estou convencida) deveria alegrar seus sonhos.

Os dias decorriam com estes encontros cheios de amizade e confusão, onde os risos não precisavam de genuínas piadas, eles eras autênticas e inevitáveis piadas.

Muitas das noites prolongaram-se com término em bares de Sintra, Cascais, Lisboa ou Algueirão: Taverna dos Trovadores, Rasputin, Bar Finalmente, Kontiki, entre outros. As saídas eram sentidas de intensa excitação, de tão imprevisíveis e por algum nervosismo da minha parte: pessoa insegura, sempre à espera que os palcos por onde passássemos fossem visitados pela trupe e que, teimosamente, acabassem por me chamar para cantar. Quando o regresso de Lisboa era feito de comboio, não era invulgar perdermos o último, perto da 1:30. Vadiávamos então pela cidade, por entre botecos e o rio Tejo, até apanharmos um dos primeiros da manhã. Já no comboio, alguns rendiam-se ao cansaço e balançavam a cabeça e o corpo ao ritmo do andamento, em sono profundo, já desligados dos resistentes que, teimosamente, continuavam as cantorias, as gargalhadas e os alegres relatos dos acontecimentos da noite, onde o artista principal era, usualmente, o Manel Leitão.

Certa noite, num qualquer bar lisboeta, o Manel sucumbiu às noites pouco dormidas durante a semana de trabalho bancário e adormeceu sentado num sofá. Foi acordado pelo empregado de mesa, farto de nós e a querer fechar o bar. Ao perceber que lhe foi pedido um pagamento, num ápice, o Manel levantou-se e, com voz sonante e assertiva, quase gritou:

“- Não pago!!!” - enquanto apalpava os bolsos das calças e nos fez, miraculosamente, permanecer em silêncio, atónitos, olhos cravados na sua figura trémula, a aguardarmos um desfecho qualquer.

 “- Tenho passe!” – julgando ele ter sido interpelado por um revisor da CP.

Milésimos de segundos durou o silêncio, logo quebrado por gargalhadas até ao choro de todos nós.

Outra vez, num bar para os lados da Rua da Rosa, em Lisboa, o Manel foi assediado por uma estonteante moçoila louraça, a quem presenteou a sua bela voz maviosa (a mesma que usava com o Dórémi).

“- Coisa mai lindaaaa.” – dizia, num arrasto de voz, não resistindo a tamanho encanto, cheio de curvas.

De imediato, foi tal formosura convidada a sentar-se à nossa mesa. 

Deleitado com a atenção recíproca, não parava de a bajular – “- Coisa mai linnnnda” - até ser alertado pelo Vasco para o tamanho descomunal dos pés e mãos da moçoila. Tratou de, delicadamente, a despachar. Embora raramente lhe conhecêssemos namorada, todo o seu comportamento era o de heterossexual e, talvez preocupado com as reacções de gozo que alguns amigos pudessem ter se soubessem deste episódio - transtornadíssimo e algo envergonhado - pediu-nos que o apagássemos da memória e não o referíssemos ao resto do grupo. Assim cumprimos, até hoje. Julgo que, se estiveres a ler este escrito, acharás, piada e me perdoarás pela inconfidência.

Um dia foi operado a um abcesso inter-nadegueiro, mesmo acima do ânus. Em franca recuperação, já com alta da clínica, como homem sedento de liberdade, não resistiu ao chamamento do seu amigo Vasco para passearem pela praia Grande. E lá foram os dois homenzarrões (um em altura, outro em largura) em cima de uma motorizada Honda 50, que tiveram o cuidado de revestir de almofadas: just in case. Claro que, quando os pontos rebentaram, o sofrimento deve ter sido imenso, mas o nosso amigo Manel aguentou, forte e feio, o caminho tortuoso, cheio de curvas a obrigar a travagens contínuas, com descidas e subidas acentuadas. Mais tarde, riu-se da enorme patetice e transformou o episódio em mais um motivo de gargalhadas.

Uma noite fomos até ao bar “Marquês da Sé”, pertinho da Sé de Lisboa. No palco, o Luís Fernando (actualmente um músico conhecido pelo seu registo bem roqueiro) segurava uma viola, da qual saíam os sons calmos (pasme-se hoje) de bossa nova. Na assistência, a sua então companheira: Adelaide Ferreira que, de franja elevada (à anos 80) e cabelo comprido aloirado, emprestava ao Bar um não-sei-quê de modernidade e fama que me deliciou. Todos aqueles acordes eram praia do Manel Leitão, que enaltecia a prestação irrepreensível, de elevado gabarito, do Luís Fernando por conseguir desenhar os tais “aranhiços” complicados ao longo do braço da viola.

Aquando da pausa, tal qual um menino bem comportado e confiável, o nosso amigo dirigiu-se ao músico e elogiou-o para, logo de seguida, sem dar azo a arrependimentos, lhe pedir autorização para tocar uma “musiquinha”. A permissão pareceu-me um pouco a contragosto, mas – mais uma vez - a voz melosa do Manel surtiu o efeito desejado e o Luís Fernando lá lhe passou o violão.

Mal sabia o que se seguiria.

Rapidamente, o palco tinha um novo actor/músico que, tocou e tocou e tocou e… o intervalo acabou, mas só mais uma, e outra, já agora… outra ainda. Vi a Adelaide Ferreira, semblante fechado, falar com o seu companheiro e percebi que a situação já não era sustentável. Alheio a tudo a que não fosse o seu momento de actuação, o Manel passou da bossa nova, para outros registos e, aquando de um tema de alta contestação, onde a voz melosa deu lugar ao ressoar gutural, e ameaçador, de “… yo no pago los tributos…”, de olhar ameaçador a varrer a plateia (agora) completamente em silêncio: rosto bolachudo, olhos esbugalhados, ornados de fundas olheiras escuras e triangulares, pupilas mergulhadas num vermelho amarelado, queixada inferior nervosa, como se procurasse melhor encaixe, narinas dilatadas… fez a pobre da viola voltear pelo ar para cair no seu colo, onde foi alvo de batuques fortíssimos, enquanto lhe puxava até aos limites possíveis as cordas, para visível desespero do Luís Fernando que – já sem aguentar mais tal pressão - quase a arrancou das suas mãos, à força, e lhe pediu, baixinho, que se ausentasse do palco. Quase em vénia, de novo com a voz melosa, agradeceu, desceu do palco e dirigiu-se a nós: rosto cândido e bonacheirão, sorridente, corpo a ondular levemente no curto caminhar, ar triunfante.

Nos amores a sorte era-lhe desconhecida. Um dia apareceu alguém a quem dedicou afecto, mas ao aceitar acompanhá-la a casa, durante o trajecto, apercebeu-se de que o ex da mocita ainda não era ex e para exacerbar o seu desapontamento e aumentar o receio da recente revelação, quando ela abriu a porta de casa, o Manel deu de caras com um crucifixo pendurado no Hall de entrada, qual augúrio, que o impediu de entrar, acabando por dar uma desculpa esfarrapada à rapariga e pôr-se a milhas o mais rápido que conseguiu. Não reincidindo em tal relação.

Em outra experiência, que acreditou vivamente ser seríssima, apaixonou-se por uma rapariguita que lhe despertava sentimentos de amor, carinho e protecção. Tratava-a nas palmas da mão e ela acabou por o enganar miseravelmente, roubando, a ele e à D. Margarida, uma quantia considerável de dinheiro. Terá sido este último caso que o mais desgostou, colocando no seu semblante uma nuvem que – quem mais o conhecia – facilmente identificava como manifestação de enorme sofrer.

Não tinha, repito, muita sorte com as mulheres, este meu amigo e, num revés estúpido com (principalmente) um dos seus (nossos) amigos, também ele músico, e a doença de sua mãe – condição que assustava enormemente a sua alma sedenta de paz, amor, harmonia e muita amizade - o Manel não aguentou, ganhou fobia ao local que escolhera para morar e decidiu partir.

Mudaram-se para Colares, e tornaram-se a mudar para o Pinhal Novo, até que, dado o agravar do estado físico da D. Margarida – a necessitar de maiores cuidados e de melhor acompanhamento médico e familiar – esta grande e generosa senhora foi para Coimbra onde a sua filha (irmã do Manel) residia.

O nosso Manel, que afirmava que no dia em que sua mãe morresse ele também morreria, incapaz de a deixar, seguiu com ela em direcção à cidade dos estudantes.

Típico amigo mais velho, de quem era fácil gostar, o seu carisma transformava-o em constante motor de arranque de boa disposição. Claro que as cervejas ajudavam um pouco.

No dia do funeral do pai do Toni de Sousa – também ele músico, numa vertente mais solista – o Manel fez questão de o ajudar a carregar o caixão. Em certo ponto do trajecto, o Toni pisou o Manel, desculpando-se de imediato pelo percalço. Em resposta, este desvalorizou a situação, afirmou que não era nada, que estava tudo bem: “- O pé é teu…”. Esta simples e espontânea frase apaziguou a dor do Toni, e fez com que quase se desmanchasse em riso, com o risco de lhe faltar as forças e deixar cair o caixão. Durante largos tempos seria, também este episódio, relato nas mesas de café, como prova de existência de uma ténue linha entre a dor e a boa disposição; o sentimento de amizade aliado a um lassez faire laissez passer que tanto caracterizava o nosso grupo de amigos.

Pensando bem, o Manel seria digno de uma biografia onde, lamentavelmente, o final, não poderia ser feliz. Seria guião de filme onde as gargalhadas surgem, em imagens de degradação, tristeza, abandono e solidão. Filme onde nas entrelinhas do Guião se sentia o revés de escolhas, o avesso de deixar andar, a realidade versus “tudo ficará bem”. Ele seria o próprio filme, aquele onde amiúde nos revimos, mas rejeitamos como nosso, porque termina mal: termina com a morte, quando ainda se sente tão viva a memória dos alegres convívios, quando se ouvem ainda as piadas e ressoam as gargalhadas, quando ainda se percebe e sente o amor fácil e simples que tinha pela música, pelas tertúlias e por todos nós.

O Manel era o concierto de Aranjuez que sublimemente tocava e respirava, era um Paco de Lucia, era um Manitas de Plata, era um contestatário Pablo Milanês, mas, sobretudo, era o artista que no final do filme já nos pertence, faz parte dos nossos poros, é a nossa pele. O artista que morre no final do filme, desgraçado e incompreendido, sem que - para nós – faça algum sentido, porque nos entrou no coração e aceitámos todas as suas fraquezas, percebemos a sua postura, a sua bondade e inocência, as suas travessuras. E, no final, sentimos que a sua alma se perdeu por entre sujidades alheias em luta pela liberdade, suja na imundície de falta de escrúpulos de alguns. 

O Bom Selvagem de Rousseau.

E damos por nós a chorar a inevitabilidade de um desfecho triste, enquanto resposta à própria inércia e impotência.

Saudosos, desejamos que, ao menos no seu período último de vida, longe de todos nós, tenha sido compensado com amor e que se tenha, ele próprio, encontrado.

A vida tem destas coisas: aquele ser carismático, ferido por seus amores, ofendido por amigos que não souberam respeitar a sua sensibilidade e por outros que, por circunstâncias várias, mudaram os seus hábitos, abandonando-o, refugiou-se em isolamento e distância e, tanto quanto sei, não encontrou local que presenteasse com as suas gargalhadas e a sua música. Teve, no entanto, já em Coimbra, sua última morada, finalmente, a sorte merecida de encontrar uma mulher a quem se uniu e viveu até ao dia da sua morte.

Não sei a causa da morte, não perguntei.

Não interessa.

Morreu!

Morreu o amigo que me fazia cantar “Povo que lavas no rio” no bar “O Berro”, no “Kontiki”, onde calhasse. O amigo sempre a incentivar-me e sempre pronto a escutar os meus fados e standards de jazz. O amigo sempre pronto a enaltecer os meus fracos dotes, que – sem saber da minha enorme insegurança, ou talvez por a conhecer – fazia com que eu me escondesse, aquando da ida aos bares por onde acabava a tocar, antes que ele me anunciasse e me “obrigasse” – por maior vergonha na recusa - a pisar o palco.

Morreu o amigo que, certa noite, fez questão de jantar comigo e, com imenso sofrer, mas reconhecida verticalidade, me alertou para enganos vários de que recusei dar conta. O amigo que me acusou de ser demasiado ingénua, na vez de parva e me tentou abrir os olhos para a vidinha que eu tinha. O amigo cuja sensibilidade roçou a minha, ao ponto de ser eu quase a consolá-lo pelas revelações que desenrolava durante o jantar. E bebemos, meu Deus, como bebemos. O amigo que, para atenuar a minha teimosa dor (em negação) me levou nessa noite ao Kontiki e, sem que saiba como, do nada, nos colocou no palco. Lembro bem um dos temas (talvez tenha sido o único): “The days of wine and roses”. Lembro demasiado bem de o cantar em choro, inevitavelmente, desafinada e com plena noção de não conseguir fazer melhor. Lembro as lágrimas desconsoladas a formar uma cortina impenetrável para a sala. Lembro a vergonha sem sentido. Não recordo como deixei o palco, tão pouco como regressei a casa. Apenas senti que as minhas forças soçobravam, mas o meu querido e saudoso Manel terá decerto, nessa noite, gasto todas as suas energias ao ter tomado a difícil decisão de me alertar para factos que poderiam pôr em causa uma amizade que tanto prezava. Escolheu o caminho mais tortuoso: o da rectidão e da verdade. Não é qualquer um que tem tamanha coragem. Eu entendi-a, melhor, sentia-a.

Obrigada, meu grande amigo, obrigada por te teres cruzado comigo e permitido que ficasse.

Não voltámos a falar no assunto desse jantar mas, se dúvidas houvesse, tive a certeza que aquele homem era especial: honesto, verdadeiro… doesse a quem doesse, mesmo que fosse apanhado por entre fogos. E, nesse dia, o carinho e admiração por ele aumentaram. Por entre as cortinas galhofeiras do seu palco de vida, vislumbrei um ser enorme, corajoso, sério e verdadeiramente digno de se gostar.

O meu mundo, tal qual o conhecia, foi – nessa noite - tocado, beliscado e, a partir daí, paulatinamente, iniciou o seu desmoronar.

Esta tua amiga agradece o privilégio de me teres aceitado no teu mundo, de me teres enriquecido com estórias, de me avivares o gosto musical e poético. Obrigada por me teres chamado, generosamente, “Pimentinha”, por me dares alguma confiança, até mesmo quando me espantavas os pânicos, que durante tantos anos se me agarraram à pele. Agradeço os teus risos, os teus gestos meigos e arrastar de sons guturais quando me transmitias carinho.

Obrigada por todos os momentos de ti.

Segue agora por essa estrada estelar no teu carocha-amarelado, com tua mãe como tua espantosa companheira e Dórémi, esse cão pulguento, que não poderia ter tido melhor companheiro.

Toca as tuas músicas. Embala as almas do Olimpo. Encontra outros amigos com quem te partilhes e não te magoem. E, se possível, não te esqueças de nós, não te esqueças de mim.

Um dia voltaremos a abraçar-nos. Cantaremos as nossas músicas até Orpheu nos embalar, felizes, nunca suficientemente acompanhados, nunca praticamente sós, mas sempre sedentos de espalhar alegria e música e muita conversa.