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03 dezembro 2014

Maratona Gastronómica




Aviso: Qualquer semelhança com os factos e personagens relatados neste texto são pura realidade.

- Vai Tutas, tu consegues, vai… acredita, pá… Tu consegues!!!!”
Obedecendo às vozes uníssonas de JR e TB e ao assobio esgrouviado  da AL, o Tutas –estoicamente – abria a porta do carro, colocava o pé esquerdo no terreno de terra batida e entortava ligeiramente o direito, pronto a recuar na intenção de sair da viatura. Em milésimos de segundo, a porta batia no trinco e lá estavamos os quatro , entre risos, protestos e lamurias, já sem assobio. A rodear a dianteira do carro os mastins ladravam sem parar, de forma ameaçadora e, o mais afoito,  equilibrava-se, com as patolas da frente na vidraça do condutor,  de fortes unhas a escorregar pelo cinza do Audi, a fazer-nos imaginar os cabelos do Tutas de pé (caso a sua cabeça não estivesse totalmente rapada).
- Eh pá, os gajos são inofensivos. Vai lá pá… ó Tutas vai! Tu consegues…”
O Tutas repetia a façanha, algumas vezes conseguia retirar o corpo por completo, dar um ou dois passos mas, de seguida, contornava a porta do carro e quase em voo, mandava-se para o banco dianteiro.
Mas voltemos atrás no tempo.

Tudo começou no sábado, num imenso e delicioso jantar no “TÁNAHORA”, em A-das-Lebres, onde festejámos os anos do Paulo Vaz, um excelente amigo (já integrado no seio desta família). Claro que a confusão – apanágio destes encontros dos Lellos – não se fez anunciar e instalou-se: entre decibéis elevadíssimos e risadas; bacalhau com natas e bochechas de porco; roubos de comida dos pratos de uns e outros; doces;  vinhos, cervejas, sangrias, Portos e afins.
Ao mano Zéca, querido sobrinho Hugo e equipa, os nossos agradecimentos por terem um espaço tão agradável e pela excelente comida que nos iniciou na maratona gastronómica deste fim-de-semana.
No final da noite as crianças sabiam os seus nomes, pareciam estar normais (o que nos dá sempre um grande alívio) e os adultos estavam a entrar cada vez mais na normalidade: espalhafatosamente baralhados. Por sua vez, o aniversariante – habituado que está à confusão da família dos Lellos – pareceu-me bem de saúde e feliz.
Terminada a noite, despedimo-nos ordenadamente, com uns a terem direito a duplos e triplos beijos e outros a verem navios.
No domingo, as facções: família Cácá e família Tutas, com o emplastro TB (a minha pessoa em pessoa) e o adoptado JR, abririam cedo a pestana e… ala para Portalegre. No que me diz respeito (sou a emplastro TB) levei a mochila e acamei na cama do Tiaguinho que, por sua vez, levou a mochila e pediu asilo na família Cácá. Para trás deixou o Balú – o refugiado cachorro franjolas – que, exigiu dormir na sua camita ao lado da minha e teve alguns pesadelos durante a noite (possivelmente com medo que eu o mordesse).
O Tutas, ainda de madrugada, fez o favor de andar de um lado ao outro do corredor, com a sua tosse canina a servir de despertador. E lá me levantei, cheia de pica, com a cama a agarrar-me, a não querer que a abandonasse.
Enquanto eu jejuei, o resto do pessoal não perdoou umas dentadas nas apetecíveis fatias de pão passadas em ovo (ó balha-nos deuses: será que conseguiram digerir o jantar e se esqueceram do almoço marcado para daí a umas horitas?) e beberam sumo de laranja.
Iniciámos a viagem. 1º destino: saída da ponte Vasco da Gama e apanhar o adoptado JR.
A paisagem foi alvo (pela milionésima primeira vez) de ahs e ohs e novos ahs e ohs, com direito a ser fotografada pela “coo-pilota” AL que, sem avisar, abria a janela e click (olhava para o resultado), click (tornava a olhar o resultado) e click (de novo, olhava o resultado), para chegar SEMPRE à conclusão de que os resultados não resultavam (talvez porque o Tutas não parava o carro, sei lá…). Eu, atrás, fiquei com o penteado despenteado e ainda estou a descongelar alguns neurónios (isto vai aos poucos, que são muitos).
Pelo caminho, os telefonemas à família Cácá primaram e, invariavelmente:
- Atão, já saíram? – perguntava o Tutas.
- Não. Estão a tomar o pequeno-almoço – respondia a AL.
O fim da ponte anunciou-se e lá vislumbrámos o adoptado JR, de sobretudo cinzento - sem capuz, que os odeia (deve ter medo de enfiar barretes) -, óculos de lentes progressivas, mochila a condizer com o sobretudo e gaitinhas perto da garganta, mas do lado de dentro. E trazia ainda a vontade de falar… e falar… e falar. Há que reconhecer que foi um falar interessante - notório na alegria que acrescentou ao habitáculo de vidros limpos e límpidos (excepto o do seu lado: completamente embaciado).
Muitas coisas foram ditas mas escusado será relatá-las que ninguém iria entender. Largo um ou outro exemplo, só para os mais curiosos:
JR - Espera… deixa-me tirar os óculos… - e mais uma fotografia para o boneco.
JR - Espera… deixa-me pôr os óculos… Estamos na A6!
Tutas – Como é que sabes?
JR – Ó pá… Agora , com estas lentes super-progressivas, se olhar lá para o fundo, até consigo ver as placas espanholas.
E eu, infeliz, com um olho a ver ao perto e outro ao longe, nem o marco com a indicação A6 consegui ver.
Lá para Estremoz, o JR questionou o Tutas se teria fechado o seu carro:
– Eh pá, Tutas, eu fechei o meu carro?
Tentámos descansá-lo: que sim, com toda a certeza, que faz parte da rotina…, mas o JR, já sem dúvidas e após fazer o rewind, chegou à conclusão de que o carrito estava aberto. Colocou-se a hipótese de telefonar ao João Carlos (que ainda estava para os lados de Torres Novas, uns 100 Km atrás de nós e por isso mais perto do carro do JR), mas primeiro ele teria que ir ao nosso encontro para ir buscar a chave do carro. Desistimos da ideia, tanto mais que o JR lembrou-se que, quando anda de mota, estaciona-a e não tem como a fechar e diante tal argumento seu, que não conseguiu desmontar, ficou mais descansadito e resolveu lembrar-se – de novo – da sopa feita na noite anterior e que ficou esquecida fora do frigorífico.
- Ó pá… será que a sopa se estragou, fora do frigorífico?
E nós:
- Nãããão… a sopinha aguenta-se bem… não se estraga assim. Nem sequer está a trovejar… puseste alho francês?
- Não. Só puz alho…
- Ahhhh então não se estraga… Nem sequer faz relâmpagos…
E o JR já muito mais descansado e agradecido com a explicação dos trovões e das faíscas e a fazer banda desenhada para o ar, embaciou ainda mais o vidrinho do lado dele.
Em Estremoz (que só vi de passagem), dei a entender que seria agradável beber um galãozito, mas os cafés devem ter emigrado, que o Tutas só parou em Portalegre.
Para surpreender o Diogo (que não sabia desta excursão familiar), o Tutas não estacionou perto do Café Central (ponto de encontro e local do almoço), pelo que lá fomos, colados às ombreiras que não nos protegiam do cacimbo e que nos deixou preocupados com as gaitinhas do JR. A ideia era, a certa altura, ficarmos escondidos enquanto o JR se adiantava e preparava o terreno da surpresa.
E lá foi o JR: mochila a descair do ombro, mãos nos bolsos do sobretudo, óculos de lentes progressivas, gaitinhas no peito, pescoço encolhido – deveria ser para evitar a chuvinha miudinha -, corpo inclinado para a frente a contrariar a inclinação da pequena ladeira que nos separava do Café Central. Nós, encostados a uma vitrina e de olhos espevitados e colados à porta do café (devia ser porque não tínhamos lentes progressivas), aguardámos o regresso do adoptado que se fez logo de seguida, da mesma maneira, mas ao contrário: inclinado para trás.
O Diogo, como faz o turno da tarde e noite, segundo indicações da sua mãe, ainda dormia a sono solto. Foi entre murmúrios, lamurias e protestos velados que invadimos o café e, com o desgosto: vai de uma tacinha de tinto na vez do galão. Até que o Tutas, não se dando por vencido e com indicações da Domingas (mãe do Diogo), nos enfiou de novo no carrito e resolveu ir surpreender o filhote, na sua doce camita.
Chegados a uma casita branca, debroada a amarelo, plantada numa propriedade privada, o Tutas fez soar a buzina do seu automóvel: insistentemente, sem se atrever a sair do carro, por saber da existência de cães. Ao fim de uns minutos de chifrineira desalmada, lembrou-se que casa também poderia ter outros inquilinos e que seria indelicado acordá-los daquela maneira. Telefonou à Domingas e…
- Eh pá, vamos embora… não é esta casa…
O mais depressa que pudemos, todos ajudámos na manobra perigosa de marcha atrás, num “imenso” declive e numa estradinha onde não seria possível fazer inversão de marcha.
JR – Vira mais Tutas… não é para a direita pá… VIRA PR’À ESQUERDA. Eh pá Tutas…. Direita, mais para a esquerda direita pá…
TB – CUIDADO MANO… estás quase a sair da berma… direita mano, direita.
JR – Ó Tutas pá…. Esquerda… vira para a esquerda…
E o Tutas, com a porta do condutor entreaberta, cabeça de fora a pender para a traseira do carro – Eh pá, eu estou a ver, caraças… vamos mas é embora daqui, antes que o dono da casa saia de caçadeira.
E entre gargalhadas incrédulas, lá se fez a manobra. A casa do Diogo ficava a escassos metros, no terreno abaixo da casa anterior e era de tal maneira perto que esta parecia fazer parte do tejadilho do carro.
Desta vez, uma série de mastins, em ladroagem desigual, colou-se ao carro e o meu mano descobriu que tinha uma buzina a duas vozes: ora aguda, ora grave, e foi uma chinfrineira desenfreada, assobios arrepiantes, risos e gargalhadas, “DIOOOOOOOOOOOGOS” à mistura, telefonemas para os telemóveis dele, da Maria (sua companheira) e telefone fixo da casa. E as gaitinhas do JR (segundo o próprio) a descerem à boca do estômago, a AL a ficar sem assobio, eu sem voz e o Tutas a arranjar coragem para invadir a casa.
- Vai lá Tutas, coragem pá. Os cães não fazem mal, têm ar inofensivo…
O Tutas tentava – pouco, mas tentava – sempre com o nosso apoio. E de cada vez que fechava a porta: os cães afastavam-se, para retomar o ataque em nova tentativa.
JR, TB e AL – É preciso acreditar Tutas. Vai lá pá. ACREDITA!!! FORÇA, CORAGEM!!!
Até que de repente, um ciclista passou na estrada, atrás do carro e os cães mudaram de alvo. Caninos para um lado, Tutas para o outro, a atingir o alpendre e a fechar-se atrás de uma porta em arame, mais parecendo enjaulado que outra coisa.
Entrou na casa e tornou realidade o que até aí – para o Diogo – seria um sonho (eu não disse pesadelo, ok?), o seu paizinho mesmo ali, por cima da sua cabecinha adormecida.
De regresso, o Tutas foi escoltado até ao carro.
Como tínhamos tempo, passeámos um pouco, ao som das memórias futebolísticas do Tutas e farmacêuticas do JR. Olhámos o estádio de futebol, onde tantos golos o Tutas marcou; mais abaixo, rodeámos o plátano centenal que, de tão vasto, vê os seus potentosos galhos suportados por suportes em ferro, pintado de várias cores. Debaixo da contínua névoa de chuvinha, o JR contraía o pescoço, tipo cágado, como se tal postura evitasse que a chuvinha lhe molhasse a tola e incomodasse as gaitinhas. JR, que – repito - prefere ter as gaitinhas a usar um gorro.
Entretanto a família Cácá chegou e fomos ao seu encontro, no exacto momento em que estacionavam. No lugar do condutor, o meu mano João Carlos, de ar sereno; ao seu lado, o Brunex era completamente agarrado pelo banco que não o largava; atrás o Tiaguinho de ar feliz por nos ver; ao lado a Manela, a fechar um saco de plástico com vomitado do Gonças e com ar de quem o vai atirar à cabeça do João Carlos. Quanto ao Gonças, um pedacito amarelado e a dizer que estava cheio de fome, já saltava do carro.
No Central, reiniciámos a maratona com uns copitos de vinho tinto aqui, outros ali (andavam sempre a fugir); petiscos e, já na companhia dos dorminhocos e ainda sobressaltados, Diogo e Maria e dos restantes convivas, sentámo-nos para o repasto: bacalhau com natas; sangria; pernil com migas e batata frita; sangria e vinho tinto; doces; vinho tinto e sangria; o chavascal do costume; os papparazzis do costume; a alegria do pessoal; a confusão; a troca de gritos; a sangria & vinho tinto, não Lda.; as patetices; as provocações; o resvalar de olhos e lentes progressivas pelos amigos e o desejar (estou convicta) de outros encontros com os amigos do Donald’s Club, familiares e todos os que vierem por bem (é favor trazerem sangria e vinho tinto).
A comitiva – Cácá e Tutas - ainda passou pela bonita casa da simpática Marília (aniversariante), onde bisbilhotou as obras de arte e transformações da casa. Por fim, de novo no Central, procedemos à segunda despedida do Diogo (o Tutas ainda voltou para uma terceira despedida melosa ao seu primogénito).
De regresso a casa, ainda de copo na mão lalala… senhoras e senhores ... Olavo Bilack... lala
Desculpem, não é nada disto.
De regresso a casa, o Tiaguinho foi incorporado entre mim e o JR. Os vidros portaram-se bem, à excepção do do lado do JR: embaciado (porque seria?). Durante a viagem escutaram-se assuntos sérios entremeados com outros, galhofeiros e, numa paragem casual, numa área de serviço, o JR a queixar-se de uma anca, trocou de lugar comigo que – para ser simpática e, depois de saber do problema do seu joelho esquerdo, que estala com’ó caraças (demonstração feita ainda na casa da Marília), acabei por sentir uma pequenina dor solidária na minha anca esquerda. Após alguns Kms de estrada e falatório, todos os vidros estavam limpinhos, à excepção do vidro ao lado do JR: completamente embaciado.
E não vos canso mais.
Mas antes de terminar preciso dizer-lhes que o JR insistiu que passássemos em sua casa para provarmos a dita sopinha, não sem antes verificarmos se o carro ainda estaria no mesmo sítio, claro.
A malta não se fez rogada, mas pelo sim pelo não decidimos passar no “Lidel” e comprarmos uns bifinhos de perú e umas garrafinhas de tintol e umas batatinhas e uma saladinha e uns chocolatitos e umas meias quentinhas.
E assim foi.
O carro estava fechadíssimo!
A entrada no “Lidule” fez-se em correria espontânea com o JR à cabeça, a guiar um cestinho de compras e a pantominar pelos corredores afora.
Já em casa do JR… comemos e bebemos como se há 15 dias não o fizéssemos.
Ah e a sopa estava boa.

E, agora sim, termino, que o JR  está a deitar fumaça, desejoso de fazer a sua publicação (já ameaçou fazê-lo e tudo), mas combinámos fazer as publicações em simultâneo, para não haver copiansos. Além disso, não quero acordar as gaitinhas.

Adorei e agradeço a todos os belos momentos que passámos.

1 comentário:

joao rafael ventura ferreira disse...

Adorei ler!
Vivi tudo pela segunda vez em menos de uma semana!
Parabéns!!