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19 maio 2006

Socorro... Fui Assaltada

Abril é um mês terrível, repleto de pagamentos e por isso indesejável. Todas as entidades parecem associar-se nesse mês e é um ver se te avias para pagar à EDP, ao SMAS, à Companhia de Gaz, à Telecom, à “Internet”, a Contribuição Autárquica, a mensalidade da casa, os vários seguros da casa, de vida, do carro... e, por falar do carro, a famosa ida à inspecção de veículos, que envolve sempre uma revisão onde o desgraçado acusa sempre danos e os necessários e inadiáveis arranjos para que passe na inspecção.

Desta vez, mal recomposta da substituição da placa de distribuição ou transmissão ou lá o que seja, que sem avisos partiu e fazia o automóvel andar aos solavancos, o estúpido arranja uma mazela que me obriga a comprar um disco de embraiagem novo e mais foles de não-sei-o-quê, uma mudança de óleo e substituição do filtro a ele relacionado e ainda o filtro de ar, para que respire melhor e... a famosa e caríssima mão-de-obra... Como se não bastasse de desgraças, a agravar a situação, fico sem o pópó, porque eles querem-no na oficina, assim, sem dó nem piedade... e eu tenho de andar a pé.

Ok, pensamentos positivos, sempre queimo umas calorias a mais, faz muito bem à saúde, ajuda a manter a linha e sempre se poupa no combustível, etc., etc., etc. O trajecto não é longo, cerca de um km de casa à estação de combóios.... aguento firme.

A coisa até corre bem, o tempo ajuda com os seus dias ensolarados, nada de mais.

Um desses dias, já de regresso, por volta das 16 horas, sigo o trilho em direcção ao lar doce lar. Ligo ao namorado, que prontamenteme me acompanha nesses 15 minutinhos de caminhada. Alegre, palreio e escuto-o. Perto da entrada do meu bairro despeço-me, não quero “tirar-lhe” mais tempo e desligo.

O dedo encontra-se ainda a pressionar o botão do auricolar, quando esbarro contra uma faca que, por acaso, se encontra na mão de um indivíduo, ali bem na minha frente, travando o meu feliz andamento. Caído do Céu? Magia? Estarei a alucinar? Olho-o e reconheço alguém que por alguns instantes caminhara paralelo a mim, bem do outro lado da estrada.

Estes velozes pensamentos são acompanhados por um grito estranho, misto de desespero e susto. Um grito mais parecido com o uivo de um animal acossado. Olho rápido à minha volta e... ninguém, a não ser eu, o indivíduo e aquela faca bem encostada à minha barriga que teimo em encolher. O grito havia saído da minha garganta. Então eu tenho uma reacção daquelas? E um grito assim tão esganiçado? Espanto sobre espanto.

- Passa para cá essa merda!

Indelicado o sujeito. Estúpido de todo. Com que direito me trata por tu?, assim como se fosse um amigo de longa data... francamente. E não saberá ele que me assustou? Tive vontade de o esbofetear e dizer-lhe “- Nunca mais me faça isto OUVIUUU???? Poderia ter tido um ataque de coração, ora faça-me o favor.... que raio, que parvalhão me saiu. Então não sabe que essa faca pode magoar alguém??? Que coisa....” A seguir, tirar-lhe a faca, dar-lhe um golpe de judo ou karate, morder-lhe a mão e partir a faca aos pedacitos. Tudo isso enquanto lhe pregava o maior ralhete e o ameaçava de lhe dar mais se o visse de novo no meu caminho. “- Xô, andor, vá de retro, evapore-se, suma-se tão rápido quanto apareceu na minha frente....”. Nada... Dir-se-ia que o grito inconsciente e irreconhecível - que o meu outro eu mandou para fora de mim – limpou o canal do som, colocou barreiras, fez delete, sei lá. Só a minha barriguinha teimou em se manifestar obrigando-me a respirar pouco, com medo de a expandir, o que poderia dar mau resultado com o bico daquela arma branca que sem ser branca era assustadora como o raio. Atrofiei completamente.

Olho o mágico, o maratonista, o caído do Céu – que eu não o vi atravessar a estrada não senhor . Era um indivíduo de cerca de 20 anitos, tez muito escura, assim mais para o negro, cabelo curtinho, bem apresentado, camisola vermelha e calça de ganga. Parecia até lavadinho. Ora bolas!?!?!?!! Estava ele tão bem do outro lado da estrada, local onde a faca não incomodava nadinha e onde poderia ter continuado... que chatice.

E cadê os heróis??? Hã??? Sim, aqueles que também aparecem de surpresa, torcem o pulso enquanto dão um par de socos ao vilão, assim, sem sequer despentearem um cabelito que seja? Nem vê-los quando são precisos...

Segundos depois do ataque e do meu grito, já lhe dou o telemóvel, o meu companheiro de tantas horas. Faço questão de lhe passar o meu blusão de cabedal que transporto no braço esquerdo, ao mesmo tempo que torço delicadamente o tronco – por causa da faca que nem ouso tornar a olhar – e retiro a mala que transporto como mochila. Dizem que quando a esmola é grande o pobre desconfia e ele deveria ser muito pobresinho porque só quis o telemóvel. Incrédula vejo-o arrancar à bruta o auricolar e com desprezo mandá-lo ao chão.

- Não quero esta porcaria!

Então o anormal não saberá que as ondas electromagnéticas fazem mal ao nosso rico cérebro??? E não consegue imaginar quantos auricolares eu já adquiri para minimizar esses nefastos efeitos? Manda-me assim, sem cuidado algum, o meu querido auricolar para o chão? Parvalhão de todo o estronço. Quer fazer mal à sua saúde, que faça, mas seja mais delicado com as coisas dos outros, ora essa...

Vejo-o afastar-se a correr, em sentido contrário ao que eu tomava e dou comigo já virada na sua direcção, de braço esticado com a mala e o casaco pendurados. Terá levado a faca consigo ou ela ainda ali está, encostadinha a mim???

Breves milésimos de segundo para perceber a impossibilidade, breves milésimos de segundos para me baixar a apanhar o que restava do telemóvel – o auricolar - breves milésimos de segundo para o ver olhar para trás, na minha direcção e perceber a sua hesitação. Ter-se-à arrependido?? A voz do meu outro eu a surgir de novo: “- Não posso tirar uns numerozitos?” tipo último desejo antes de subir ao cadafalso, de forma suplicante... “- Vá lá... só uns numerozitos”. Calo a voz que não reconheço minha enquanto o vejo mudar de semblante, incrédulo. Bem feita... pelo menos surpreendi-o. Ora essa... mereceu. Logo retoma a correria, já sem olhar.

Caio em mim, olho bem a blusa justa ao corpo e não encontro furo algum, nem mancha de sangue... aperto o blusão e a mala contra o estômago, e retomo a minha marcha.

Ahhhhh preciso dizer que o meu filho e dois amigos estavam em casa e, depois de tomarem conhecimento do sucedido, saltaram do sofá (o que nem sempre é fácil) e numa correria desenfreada – indo o meu filho com um taco de baseball – palmilharam com persistência as ruelas fora do bairro. Encontraram-no cerca de cinco telefonemas para Cabo Verde depois. Sacaram-lhe o telemóvel e ainda teve direito a uma basebolada, tendo-se esgueirado com gritos que não terá identificado como seus. Tenho disso experiência e certezinha absoluta.

Afinal os meus heróis tardam, mas não falham.

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