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26 abril 2006

Ganhei um Novo Amigo - V


Foto de: Luís Pereira

Julguei nunca mais ver o meu querido amigo. As sandes que lhe destinava ficavam no saco, de um dia para o outro, enrijecendo, acabando por ser comidas por mim, ou deitadas fora. Do meu pequeno nem sinais de vida e um sentimento de revolta avolumou-se junto com a tristeza pela sua ausência. Pensei procurá-lo junto dos revisores dos caminhos de ferro, mas não o fiz. O simples imaginar que tivesse regressado ao seu país fazia-me mal. Até que o voltei a ver. Não coube em mim de contentamento.

Alessandro, de braços abertos, segurava os ferros dos assentos do comboio, tapando o corredor com o seu corpito. A sua mão esquerda envolvia um dos suportes mesmo ao lado do assento que escolhi para repousar este corpo mal descansado. Olhava em frente, não me viu, por pouco também eu não o via, absorta que ía em vazios pensamentos. Senti a sua presença, não sei como, numa necessidade de olhar para o lado, abrindo os olhos que teimavam em fechar. Vi a sua figura estática de homenzinho pequeno. Sem pensar, debrucei-me sob o lugar vago e agarrei o seu pulso. Baixou os olhos na direcção da minha mão, só depois olhou para mim. Um largo sorriso se abriu e eu ri de contentamento. Falámos ao mesmo tempo, rimos os dois. Soltou-se de mim e, colocando as mãos na cintura, de braços arqueados, semblante carregado, sobrepôs a sua voz à minha, num ralhete que me aqueceu a alma.

- Por onde tens andado?

- Eu ando todos os dias no comboio... não te tenho visto – respondi, prontamente - E tu, por onde andas?.

No silêncio que se seguiu adivinhei o espanto de ambos. Afinal apenas nos desencontrámos, mas lembrámo-nos um do outro e isso, para mim, tornou-me mais rica, mais forte, mais segura, aqueceu o meu interior. Aquele ser, criança, lembrou-se de mim, sentiu a minha falta. Que bom, que delícia. Também eu faço parte do seu mundo, quero sempre fazê-lo.

Bati levemente no assento ao lado do meu, pedindo-lhe que se sentasse. Fê-lo, pouco à vontade, balançando nervosamente as pernitas, olhando sorrateiramente para mim. Os olhos castalhos escuros brilhavam. Por entre um sorriso calmo que adoptou, apercebi-me do mau estado de alguns dentitos. Quantos cuidados precisa aquele menino.

Olhou para mim inquiridor. Baixei os olhos até ao montinho de papéis sebentos que agarrava. Sem permissão, levantei-lhe a manga da camisolita branca de lã. Às minhas narinas chegou um cheiro fortíssimo a sarro. Alessandro respira e fez-me respirar a incómoda marca da ausência de cuidados básicos de higiéne. O seu odor invadiu de tal forma o espaço que me incomodou pensar que ele sentisse o meu cheiro a lavado a que adiciono perfume. No pulso magro vejo o seu relógio .

- Vamos ver? - perguntei-lhe.

- Sim! – respondeu de imediato.

Lembrei-me que tinha mudado de telemóvel e receei que as horas já não coincidissem.

- 14 e 50... - disse-lhe a medo.

Levantou o bracito à altura dos meus olhos e, aliviada, vi a concordância das mesmas. O seu rosto moreníssimo olhou-me e na meigura do seu olhar percebi que aguardava que lhe dissesse algo.

- Certíssimo... nunca falha esse teu lindo relógio.

Sorriu orgulhoso enquanto limpava o mostrador com a manga suja da camisola.

- Julguei que tivesses regressado ao teu país Alessandro...

- Como? Não temos dinheiro... – disse, interrompendo-me, espantado.

- Tu queres regressar? - perguntei-lhe segurando a sua mão.

- Não – balbuciou e, levantando-se, delicadamente retirou a sua mão das minhas.

- Espera – disse-lhe, enquanto procurava uma moeda para lhe dar.

Aguardou de pé, distante. Alessandro terminara o seu período de pausa, entendi que o meu tempo também terminara, ele .não conversaria mais. Percebi que entrara, mais uma vez, no seu mundo proibido, onde ainda não tenho lugar. Estendi-lhe a moeda.

- Até amanhã Alessandro, espero encontrar-te por aqui.

Sorriu-me enquanto iniciava a sua distribuição de chorosos papelitos. É curioso como olha para mim no desempenho da sua tarefa. Sinto que quer guardar a minha imagem. Como gostaria de o acompanhar. Que pensará aquela cabecinha? De cada vez que o vejo repetem-se as sensações de alegria, tristeza e impotência. Não sei o que fazer.

Alessandro inverteu a sua marcha, saiu por onde houvera entrado, andando de costas, olhando-me sempre. Nos seus lábios o sorriso de novo adeus é apagado pelo fechar das portas da carruagem. Junto de mim e em mim, por mais algum tempo, ficou o seu cheiro, o cheiro da criança que adoro e não sei ajudar.

Um ano passou... rápido e não tornei a ver o Alessandro.

Onde quer que andes, pequenino amigo, espero que estejas bem e que o Deus de que tantos falam, se existir, te ajude.

Se um dia te lembrares de mim, olha o teu relógio, quem sabe, nesse preciso instante, não olharei eu o meu telemóvel ao lembrar-me de ti.

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