Páginas

06 abril 2006

Cigana




Na sala escolheu um CD de seu agrado... daqueles que a punham freneticamente a dançar... Paco de Lucia... colocou-o e preparou-se, dançaria até se esgotar.

O som estava alto e fechando os olhos escutou aquele dedilhar, inicialmente calmo de guitarras, contrariado segundos depois pelo crescendo do som. Sentia o seu sangue correr mais veloz. Levantava um braço e imitava as ciganas. O corpo gingava e a cabeça era projectada continuamente para trás, altiva e graciosamente, enquanto os pés davam passos pequenos mas rápidos, ora para a frente, ora para trás, e os braços se trocavam e o corpo se torcia e rodopiava.

A voz masculina aciganada fazia-se ouvir e ela sobrepunha a dela, forte. O mundo tomava formas diferentes... a forma da liberdade... ela era livre, sentia-se livre, jamais se sentiria aprisionada. Um salto do degrau da sala para o piso mais baixo, novo salto, desta vez para cima da arca bem defronte à lareira, onde continuou a sua dança... parecia ter asas nos pés, sentia-se leve. Novo salto para o chão da sala... calcanhares a bater o ritmo, o corpo ligeiramente de lado, quase estático, braços ligeiramente levantados, olhos sobre o ombro esquerdo que se levantava e baixava ao ritmo da música. As flautas a acompanhar o som cadenciado das guitarras, o contrabaixo a marcar o compasso, a cintura dela a dobrar-se, pendendo-lhe a cabeça sobre as costas, quase até à cintura... De repente o endireitar-se e a altivez a sobressair em gestos entrecortados com a quietude de todo o seu corpo, para logo de seguida abrir os braços ao nível do tronco e balançar-se de um lado ao outro, em movimentos rápidos, mas curtos.

A sua imaginação voava... via-se entre ciganos, numa noite cuja escuridão era contrariada pela luz quente das fogueiras. Os homens a tocar as suas guitarras, enquanto gingavam os corpos vestidos de camisas brancas ou coletes escuros sobre a pele. Deixavam cair continuamente a cabeça sob as guitarras por onde os dedos calejados faziam silvar as cordas metálicas. Os pés, calçados com grossas botas, batiam forte no chão arenoso, levantando uma fina poeira. A luz das fogueiras emprestava um tom acobreado às suas peles morenas, abrilhantadas de gotas de suor. Era um cantar forte o deles, gutural, cheio de trejeitos e arrastamentos de som, por vezes requebrado, como o sofrimento, como a dor, como a lembrança e o esquecimento... cheios de vida.

O ressurgimento dela, segurando as sete saias, bamboleando o corpo, de cabelo apanhado num carrapito, por onde se escapavam algumas melenas sobre o rosto e pescoço. Vários colares caíam sobre o colo moreno onde sobressaíam os seus peitos. Nas mãos os anéis e pulseiras tilintavam ao ritmo da música e da dança... Yo solo quiero caminar... cantava em arrepios contínuos. Imaginava os seus olhos negros, escuros como a noite, brilhantes como uma jóia, cheios de vida e desdém. Vinha carregada de amor disfarçado, cheia de liberdade e certezas, altiva, encantadora e misteriosa. As mãos batendo palmas acima da cabeça, acompanhando aquele som vibrante que a incendiava. A liberdade de dançar descalça, sem dor, sob o céu atento, onde as estrelas, envergonhadas da sua beleza e altivez, se escondiam por detrás de núvens enormes, também elas escuras a fim de se confundirem com a noite. Respirava forte, fazendo as narinas abrir e fechar, em esforço.

Permitia suavemente enlaçar-se por um cigano que a fazia rodar, para logo de seguida fugir a esse mesmo abraço, desdenhosa. O crispar de todos os músculos do rosto e de repente já não era ela... de repente já não era a cigana... de repente era som, era sangue, era orgulho, era vaidade, era fortaleza, era o recomeço de uma reestruturação que entrava nela através do canto, através da mímica, através da dança, através de um sentir verdadeiro, único, só seu...

Como era bom reencontrar-se...

Sem comentários: