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25 abril 2006

Ganhei Um Novo Amigo - IV


Foto de: Luís Garção Nunes

Os dias passaram céleres, vi o Alessandro algumas vezes, sempre fora do comboio, na gare. Várias vezes bati nos vidros das janelas até me aperceber da inutilidade do acto. Alessandro parece sempre absorto num mundo próprio, alheado. Os seus pequenos ombros dobram-se sob o peso de calculáveis dramas. Quisera estar enganada, mas aquele puto faz-me lembrar a minha desprotegida criança e isso entristece-me tanto.

Tenho vontade de correr atrás dele, lhe perguntar onde mora. Levá-lo de mão dada até sua casa, falar com quem de direito e pedir que me deixem cuidar dele. Educá-lo com carinho. Implorar que lhe dêem a oportunidade de crescer um pouco melhor.

Sei que Alessandro não é feliz e o pior é que tenho a certeza que não será por recorrer à caridade. Quando se cresce em determinado ambiente o que nos rodeia tem uma importância relativa, desconhecemos tudo o resto. Tenho medo que o alheamento de Alessandro tenha a ver com maus tratos. Sinto um nó na garganta só de imaginar tal. Não quero pressentir horror nos olhos dele, tão pouco imaginar que aquele corpito possa ser alvo de pancada, mas pior, muito pior, não quero aquela cabecinha a pensar em porquês sem resposta, a relembrar a maldade, a sofrer em pensamento, sem ninguém a quem recorrer, sem sentir nas suas faces festas de carinho. Não o quero só.

De novo a minha pequena criança acorda e se revolta, abana meus nervos, comprime meu coração, grita desesperada e faz-se ouvir nas lágrimas que não contenho, mas de nada serve, porque esta adulta que a alberga sente-se impotente, não sabe o que fazer para ajudar Alessandro.

Cerca de um mês sem ver o puto e, quando menos esperava, surge por entre as gentes, quase não o reparo. Vi-o abrir as portas que dividem as carruagens. De pronto me levantei e pedi licença, atabalhoadamente, com saco e carteira e aparelho de mp3 e guarda-chuva e kispo, tudo mal agarrado em risco de cair. Abro com dificuldade as portas, continuo a pedir licença, sem retirar os olhos dele. Por entre estáticas pessoas a sua figurinha desenha-se em movimento.

– Alessandroooooo... - quase grito.

Olha para trás e sorri-me. Consigo colocar tudo no braço esquerdo e estendo a mão direita que logo agarra. Rimos enquanto as sacudimos exageradamente. Sento-me numa cadeira e olho aquele rostinho sujo que retribui o meu olhar.

- Como estás Alessandro?

Perde o sorriso, baixa os olhos e balbucia um “mais ou menos” enquanto balança a cabecita. De imediato me vira as costas, deixando-me boqueaberta, em choque. Abre caminho por entre as gentes e sai do comboio, sem mais me olhar.

Não esperou a sandes que todos os dias levo na mala, na esperança de o ver, não esperou a moeda, não me deixou recuperar do choque e o tentasse aconchegar. Sairia com ele do comboio. Sentar-me-ia junto a si, num chão, longe dos olhares de quem não vê. Queria que falasse comigo, queria tanto que me contasse as suas tristezas, que soubesse que um dia também eu fui uma criança muito infeliz, que, talvez por isso, de forma egoísta, o entenda. Queria que soubesse que gosto muito dele e que pode sempre contar comigo.

Mas mais que tudo queria ser um ombro amigo, falar-lhe mansamente, fazê-lo sentir que ele é lindo e importante. Transmitir-lhe o valor dos sonhos, abrir um mundo novo para ele.

Não o vi durante mais de um mês e a minha criança, encolhida no seu pequenino espaço, chora, em silêncio, a sua ausência.

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