Páginas

20 maio 2007

Filmitos

Foto: de minha autoria





Cedo percebi que a melhor maneira de não remoer o passado é desdramatizar algumas recordações e deixá-las viver no meio de alegria e, quanto mais tristes forem, mais alegria lhes ofereço. Por vezes, rio mesmo às gargalhadas na cara delas e, em piruetas, deixo-as com ar admirado e incrédulo. Saio a fazer sarcásticas vénias, apertando meu coração para não chorar… deitando uns ahhhhhhs cá para fora, de desdém ou acolhimento.

Esta também sou eu!, uma artista de circo, tentando não cair do arame que piso em mais ou menos tremeliques, sem noção da distância ao chão. Por exemplo, deveria já ter tomado o meu banho, ido ao super mercado comprar comidinha, fazer uma sopita, comer e, só então estar aqui a escrever, ou a estudar, ou a ler, a pesquisar, sei lá… Mas não! Estou sentada ao computador, com o pé esquerdo pousado na cadeira, a olhar o mundo lá fora, cinzento e em nevoeiro e vejo-o agradavelmente belo.

Os pássaros, em chilreio, rasam o portão do meu quintal – preciso pintá-lo – e, primeiro, mantêm-se por cima das folhas da única árvore de fruto que aí tenho, depois, uns desistem e regressam, outros pousam e bicam as folhas mais tenras.

Falta-me a relva substituída por quadrados de tijoleira, o seu cheiro e da terra, molhadas pelo cacimbo que docemente pisa o solo. Se fechar os olhos, oiço-me a correr por ervas não cortadas. Das frestas de um baú, por entre pó pintado de claridade, a bobina desenrola-se qual filme antigo e mostra-me criança, com saia curta em godés, a correr pelos verdes acinzentados com brilho de gotículas de orvalho que molham as magras pernas desnudadas. Os soquetes brancos avivam a película, por algum tempo, até me descalçar e, sem medo, pousar os pequeninos pés na humidade da tarde, remexendo o solo com os deditos gelados.

Era o tempo em que pegava nos bichos-de-conta, minhocas, lagartas da seda e sei lá mais o quê, sem medo e sem lhes fazer mal, a brincar com eles, sem lhes perceber o medo. Tempo em que, sem nojo, fazia caracóis passear nas minhas mãos e lhes encurtava os corninhos ao toque suave de meu dedo pequenino.

Entendo o passar do tempo na agonia da recordação. Certo é que não entendo algumas melancolias, mas não me atormento. Deixei de pensar na infância triste, adolescência mais que triste a que juntei uma enorme insegurança e na minha fase adulta. Guardo tudo isso em baús que, à falta de odiadas fechaduras, encerro com pregos possíveis de arrancar.

Náusea é a palavra adequada. Não gosto de olhar para trás, mas algumas recordações lutam desmesuradamente pela actualidade e vão-se escapando para o futuro, onde me surpreendem mal coloco o pezinho nele.

Então eu deixo!, vou fazer o quê? Agarrar nelas embrulhá-las num cobertor e deitá-las ao mar, agarradas a uma pesada âncora?

Logo me verei sentada nas escarpas, olhando o solo esverdeado por entre brumas a desfazer-se, ou a tentar não cair pela largura de um pneu inchado - a ameaçar escapulir-se de meus dedos – em terror de ser engolida pelas águas vivas e ameaçadoras de um mar revolto. Verei meu olhar preso àquela figura escura, recortada por imensas estrelinhas brilhantes, que se afasta de mim, em seguras braçadas, desaparecendo e aparecendo, confundindo o meu pequenino coração em sobressalto de solidão e alegria de reencontro. Sentirei a mistura do desespero de ser esquecida e a alegria de ser lembrada, sempre no silencioso grito, como se nada se passasse, tudo estivesse bem. E estava! Tudo estava bem, quando seu rosto magro e lindo surgia junto a mim, à distância de meu abraço e, ouvia seu riso calmo. Deixava cair meu rosto em seus ombros molhados e, nunca desmentindo a certeza de me achar corajosa, deixava-o transportar-me à areia quente onde se estendia ao meu lado.

Sentada, brincava com a areia, que teimava agarrar-se ao corpo, olhava aquela água, já longe de mim, pressentia-lhe mistério no som que me deleitava e, de olhos extasiados, sonhava a sua medonha beleza.

Tudo se torna fácil de relembrar, porque não esquecido, apenas não gosto de rever certo filmes, outros… o tempo se encarrega de repassar.

E agora vou às comprinhas, vestida de doces recordações de cheiros de relva e terra e mar e areia quente, cheia de mim, criança, adolescente e adulta.

Aos poucos, por entre a música que se fizer ouvir no carro e no desejo de viajar incessantemente, em vórtice enfraquecido regressarei ao hoje que tudo encerra, mas a sorrir.

Sem comentários: