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31 dezembro 2006

A Palhacinha


Foto: Minha (tirada pelo amigo Lopez)




Não havia pisado ainda o meu 10º aniversário quando entrei para o ciclo preparatório, onde a cadeira bem lá do fundinho da sala de aula me aguardava. Queria estar bem longe do olhar dos professores e passar despercebida num ensino autoritário, que temia. A minha atenção era extrema e a aprendizagem fazia-se através do medo, curiosidade e necessidade de atafulhar o cérebro com outras coisas que não os traumas de criança infeliz. Tristeza seria, por circunstâncias que não vêm ao caso, a característica que minha alma apresentava no meu corpo de criança.

Vestia bata branca, abotoada atrás, com uma faixa que me apertava a cintura e terminava em laço. Do cabelo comprido sobressaía uma franja puxada para trás, agarrada por um laçarote, que comecei a detestar aos primeiros risos das minhas companheiras, mas não ousei tirar. Fosse pelo ar frágil, pela tristeza que emanava, ou pela forma como me apresentava vestida e penteada, desde logo as minhas colegas pressentiram em mim um ser fácil para as suas brincadeiras, por vezes repletas de crueldade. Mesmo assim, preferia a escola, a estar em casa.

As aulas começavam cedo, ainda o frio da noite não desaparecera e já as filas de rapariguinhas se faziam, junto à parede exterior da sala de aula. O professor chegava, entrava e, de imediato, era seguido pelas alunas, que se sentavam somente após a ordem daquele.

Um dia, eu e uma colega que escolhi criteriosamente, não entrámos. De ouvido colado à porta, aguardava ansiosa que o professor fizesse a chamada. Assim que ouvi o meu nome, abri a porta e entrei, tropeçando em mim mesma, fingindo uma queda que não aconteceu. Atrás de mim a minha colega fazia o seu aparecimento.

O professor, espantado, ouviu as gargalhadas de palhaço que surgiam de uma figura irreconhecível, que se apresentava na sua sala de aula vestida de calções largos cheios de remendos, presos por suspensórios, que a figurinha teimava em esticar e encolher, cabelo despenteado e em parte tapado por um chapéu, camisa desajeitada, enfeitada por uma enorme gravata desapertada e torta, meias às cores e sapatos enormes com grande parte das solas soltas. O disfarce terminava numa carantonha onde os lábios haviam sido tremendamente aumentados, as bochechas avermelhadas, os olhos, rodeados por duas imensas auréolas brancas e as sobrancelhas aumentadas com lápis preto, que apontavam uma para cima e outra para baixo. A terminar, presa com fita adesiva, disfarçada pela pintura, uma bola vermelha, corpo de um gelado qualquer, fazia a vez de nariz.

Foi dessa forma que me apresentei, ao som do meu nome, vestida de palhaço pobre, dizendo um texto que havia preparado e ensaiado com a minha colega que se mascarava de palhaço rico e cuja intervenção foi quase nula. O nervoso que a minha amiga sentiu levou-a a esquecer partes dos nossos ensaios, tendo eu sido obrigada a fazer várias adaptações para que a representação produzisse o efeito pretendido. As gargalhadas soaram atentas a um texto imaginado e, em parte, plagiado por mim. Um texto que orientei e que ainda hoje não entendo onde arranjei coragem para o representar.

Lembro as palmas no final do meu teatrinho, dos passos do professor a aproximarem-se de mim, das suas mãos a erguer-me o rosto à procura de traços conhecidos e do seu sorriso. Lembro ainda a sua voz extasiada: “- Ninguém saia do seu lugar”, de o ver sair quase a correr e regressar com outros professores.

“- Podes voltar a fazer o mesmo?”

A minha apoteose, a primeira grande alegria de criança. A descoberta do momento em que alguém me olhou com admiração e ternura. Não foi orgulho que senti - isso sinto hoje ao relembrar tais momentos – foi agradecimento por terem gostado da minha pecinha de teatro e da minha representação, mas sobretudo por me terem olhado com outros olhos e me darem valor, um valor que eu não sabia existir.

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